Os detalhes da celebração do Ano Novo chinês da década de 40 em Macau, são contados pela macaense Alda de Carvalho Ângelo no seu livro “Fragmentos do Oriente”, publicado em São Paulo, em 1965. Tradicionais como são os chineses, muitos dos costumes relatados ainda estão preservados, embora talvez umas coisas mudaram pela avanço da tecnologia, o crescimento da cidade e influenciados pela modernidade. Leia então o relato da saudosa autora com imagens do livro “Meio Século em Macau” de J.J. Monteiro:
O ANO NOVO CHINÊS EM MACAU (na década de 1940)
(CHOU NIN)
autora: Alda de Carvalho Ângelo – do livro “Fragmentos do Oriente” publicado em São Paulo 1965
imagens do livro “Meio Século em Macau” de J.J. Monteiro
Sendo o Ano Novo Chinês uma das festas chinesas mais importantes do ano, a que deixa maiores e mais profundas recordações, quer pela sua magnificência, quer pelo significado que lhe atribuem os chineses, não é de se admirar que meu primeiro pensamento seja dedicado a essa data, ao impor a mim mesma a árdua tarefa de reproduzir em letras minhas recordações de infância e de mocidade. São passados dezenove anos, dezenove longos anos que deixei a China e ainda me lembro com saudade dos momentos felizes em que, juntamente com minha família, amigos e criadas, aprestava os preparativos para o grande dia. Qual é a pessoa que morando na China, vivendo na China não pense com emoção na chegada do Ano Novo? Como não lembrar dos cinco dias de festas, dos jogos de cluk cluk que são permitidos somente nessa época; dos doces exóticos de sabor e cheiro tão diferentes dos do estrangeiro: das noites barulhentas; do cheiro característico a pólvora de bombas e bombinhas qual noite de São João no Brasil, mas em maior quantidade, nas casas alegres caiadas de fresco, tudo limpinho; das miríades lanterninhas das ruas e das embarcações todas embandeiradas que nesses dias ancoram em fileiras, em número superior a cinco mil quase ocupando toda a extensão e largura do porto, formando como que uma outra cidade, uma cidade flutuante rivalizando-se com a primeira em alegria e gala?! Como não lembrar do aspecto festivo dos chineses em suas roupas típicas, variadas, cuja única preocupação é a de se divertirem?! Corno não lembrar..
* * *
Công I Fát Chói! Công I Fát Chói! Felicidades, felicidades, muita sorte, muitas felicidades! Assim cumprimentam mutuamente parentes e amigos, sorrisos nos lábios, a cabeça balançando levemente para frente e para trás, as mãos enfiadas nas largas mangas das cabaias novinhas em folha. Estamos no dia primeiro do primeiro mês lunar, isto é, no dia do Ano Novo Chinês, do Ano Novo. a maior festa tradicional chinesa, a festa a que ninguém deixa de tomar parte. Desde a ante-véspera do grande dia que a cidade se encontra vestida de gala.
Meia noite em ponto. Os panchões (bombas e bombinhas) de muitos metros de comprimento estouram ao desafio partindo das casas e das embarcações atracadas em fileiras dentro do porto. As bancas de cluk cluk, ao longo de ambos os lados das principais ruas da cidade, dão começo ao jogo. Os banqueiros, sentados em toscos bancos compridos atrás de um taboleiro, agitam os dados num pires coberto com uma tigela e gritam: — Mái! Mái! Ng Mái lau Hói! Hói! (comprem, comprem, joguem, abre). Em volta das bancas iluminadas por frouxas luzes de candieiro, o povinho apinhado, uns sobre os outros, as mãos estendidas, colocam ou recolhem o dinheiro sobre o taboleiro, muito colorido, muito vistoso, com letras pretas, vermelhas e verdes sobre um fundo envernizado. As expressões dos jogadores são das mais variadas, mas de um modo geral, todos gritam, gesticulam, riem ao mesmo tempo. A atenção está concentrada na tigela. Não é menos a animação nas ruas de flores, nas lojas de doces, nos restaurantes, nas casas de jogo, nas casas de chá, no bazar, em suma, nos bairros chineses onde há comes e bebes e divertimentos. Tendas improvisadas nas calçadas estão abarrotadas de doces de toda espécie, de várias cores e feitios, bolos tipicamente chineses, louças vistosas e um sem número de bugigangas, aumentando assim o colorido especial da festa. O movimento do vaivém é enorme. Dir-se-ia que, movido por uma mola mágica, todos foram arrancados de suas pacíficas moradias e atirados no turbilhão da massa popular, incorporando-se a ela, movendo-se com ela. E, como para criar ainda maior confusão, irrompe por entre a multidão a procissão do dragão com seu infindável séquito, atroando aos ares suas músicas barulhentas misturadas com incessantes estouros de panchões, assinalando a passagem de sua majestade o dragão. Aos empurrões, dias e noites, durante cinco dias, saindo de uma banca para outra, jogando, comendo, correndo a cidade toda, enfrentando a chuvisquinha, a neblina, o frio de gelar, enfim, todas intempéries do inverno que costumam advir com o Ano Novo Chinês, ninguém perde a oportunidade para se divertir, ninguém faz questão de dormir ou de descansar, querendo, talvez, nesses cinco dias do ano desforrar os trezentos e sessenta restantes que mourejam de sol a sol, matando-se de trabalho. Em contraste, todo outro comércio á fechado, morto, completamente morto. Ninguém trabalha. (imagens abaixo do lai si ou envelopinho vermelho)
Công I Fát Chói! Công I Fát Chói! — Assams e amuis (criadas) cumprimentam os patrões e estes correspondem ao cumprimento, dando-lhes um lâi si (gratificação em dinheiro embrulhado em papel vermelho, O papel vermelho dá sorte, segundo os chineses.) Công I Fát Chói! As criancinhas e os mocinhos esperam avidamente o lâi si dos parentes e amigos e até das próprias criadas. — Công I Fát Chói! Công I Fát Chói — Moças e velhas, ricas e pobres, de cheón sám ou de cabaias e calças compridas, novinhas, mandadas fazer especialmente para esse dia, fitinhas na cabeça, sapatinhos de setim bordados a cores, o lencinho preso na casa do botão do lado direito, sorriso nos lábios, faces vermelhas, airosamente se dirigem umas para as casas das outras, para o cumprimento do estilo. Acompanham-nas nessa romaria as criadinhas pendurando no braço o tradicional hap ló (caixa de madeira fina redonda com divisões), repleto de frutas e doces das mais variadas, tais como: tiras cristalizadas de abóbora, de restrate e de côco, frutas cristalizadas chinesas, o quá chi vermelho e preto (sementes de abóbora e melancia), as tangerinas pequeníssimas mas muito doces, os ovos cozidos pintados a vermelho, as diversas qualidades de bolos feitos de farinha de arroz e rapadura ou açúcar pedra, tais os deliciosos chin toi cobertos de gergelim ou os công sú peáns e, acima de tudo, o famoso Tal lông Cou, o bolo rei de cor marron, envolvido em folhas de bananeira, enfeitado ao centro com o indispensável mât chou bem vermelhinho (maçã pequena seca), e uma infinidade mais de outras guloseimas próprias da ocasião. A dona da casa, agradecendo cordialmente o cumprimento, abre o hap ló, retira de lá o presente. Tira um pedaço de Tái Lông Cou, dois ou três chin toi, três ou quatro tangerinas, enfim, um bocadinho de tudo. É de boa norma e civilidade não ficar com todo o presente e colocar no hâp ló, um lai si para a criadinha.
A dona da casa oferece a suas visitas uma xícara de chá cheia três quartos sem açúcar, com o habitual sorriso, dizendo iam chá, meneando levemente a cabeça. As visitas são recebidas numa salinha, cujo chão é de ladrilho poroso, mobiliada a pau preto com encrustações de madrepérola, com cochins (almofadas) de setim vermelho bordados a cores. Os jarros enormes, nos cantos das salas, os famosos vasos de porcelana chinesa com desenhos raros, estão cheios de flores de pessegueiro, a flor tradicional do Ano Novo Chinês, a que não falta nunca em nenhuma moradia chinesa nessa época. Enfeitam também a sala os lindos seác sán montanhas em miniatura, feitas com resíduo de coque queimado ligado com cimento e água, colocadas sobre bandejas de porcelana cheias de água, contendo peixinhos ornamentais e plantas aquáticas. Sobre as montanhas veem-se homens, pontes, casinhas, templos, etc. de pedra, artisticamente dispostos. Ao longo das paredes estão compridos e estreitos quadros chineses pintados a aquarela ou a tinta Nanking e espelhos de alto valor com desenhos ou letras. É interessante notar que os chineses não varrem a casa no próprio dia do Ano Novo. Fazem isso na véspera, porque, segundo a superstição, Varrer a casa no dia do Ano Novo é varrer dinheiro e felicidade.
(foto abaixo: o livro “Meio Século em Macau” de J.J. Monteiro, publicado em dois volumes que estão disponíveis para venda no website do Instituto Internacional de Macau neste link. Na foto do lado direito, o autor J.J. Monteiro no convívio com amigos chineses saboreia um “chai” (comida de monges chineses conhecidos também por bonzos)
* Agradecimentos à família Monteiro pelo uso das imagens do livro.
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
Não poderia este blogue deixar de fazer mais um registo histórico de uma tradição mantida na Macau do ano de 2023, hoje, território da República Popular da China. Assim, o nosso colaborador, Manuel V. Basílio, macaense residente em Macau, nos dá o relato, com fotos, sobre a procissão de Nossa Senhora de Fátima realizada no […]
No Anuário de Macau do ano de 1962, nas páginas finais, vários anúncios publicitários encontravam-se publicados, os quais, reproduzimos abaixo para matar as saudades de quem viveu aquela época de ouro, ou então, para curiosidade daqueles que possam se interessar em conhecer, um pouco mais, aquela Macau de vida simples, sem modernidade, mas, mais humana.
Páginas digitalizadas do Anuário de Macau, Ano de 1962, o que aparentemente foi o último da série, ficamos aqui a conhecer quem eram as pessoas que ocuparam cargos no – Governo da Província e Repartições Públicas. Mesmo passados mais de 60 anos, agora que estamos na década com início em 2020, muitos nomes ainda estão […]
Comentários