A RUA GRANDE DO BAZAR DO BAIRRO CHINÊS, PAREDES MEIAS COM A CIDADE CRISTÃ
Texto, fotos e legendas por Manuel V. Basílio (Macau)
Durante séculos, a população chinesa vivia sobretudo fora dos muros da cidade, nos campos ou várzeas que se estendiam a norte até à Porta do Limite ou Porta do Cerco. Devido a restrições impostas pelas autoridades chinesas, os operários ou vendedores chineses, para exercerem as suas actividades na cidade cristã, atravessavam diariamente as portas da cidade e só regressavam às suas habitações, ao fim do dia, antes de as portas se fecharem. Com o decorrer do tempo, os habitantes chineses, designadamente os que viviam na povoação do Patane, começaram a espalhar as suas casas nas imediações da zona ribeirinha conhecida por “Sá Lán Chai” ( 沙欄仔 , literalmente, pequena barreira de areia), ou seja, na zona do Tarrafeiro (1), situada ao fundo da actual Calçada do Botelho (2), onde, antes dos aterros, havia pontes-cais para acostagem de barcos, e cuja linha da costa continuava ao longo da actual Rua dos Faitiões (3), seguindo-se depois pela Rua da Tercena e Rua de Nossa Senhora do Amparo, fazendo então parte de “os sítios da Praia Pequena”. A partir sobretudo de inícios do século XIX, esta linha da costa, com assoreamento e subsequentes aterros, começou a estender-se gradualmente em direcção a oeste, acabando por formar uma significativa área, onde os chineses, em curto espaço de tempo, edificaram barracas e casas para habitação e comércio, nos locais onde acharam mais conveniente, sem qualquer planeamento e alinhamento.
Sabe-se, no entanto, que até meados do século XIX, a água ainda chegava à Praia Pequena, onde se situava o Hopu Grande, a principal alfândega chinesa, pois há notícia de que, durante o governo de Ferreira do Amaral, se fez “uma muralha de 214 côvados (4) na Praia Pequena, e o cais prometido …”, e que “nos sítios da Praia Pequena dos Faitiões e Tarrafeiro estão os chinas (5) de novo levantando barracas, a despeito de Ordens, que sobre isto se tem ultimamente publicado”.
A linha da costa, porém, não terminava na Praia Pequena. Mapas de princípios do século XIX mostram que continuava nas proximidades da actual Rua dos Mercadores, indo contornar junto do sopé da colina, no cimo da qual hoje se encontra a igreja de Santo Agostinho. Há nomes que ainda subsistem na toponímia, quer em português, quer em chinês, evidenciando que outrora a linha da costa por ali passava, tais como, Rua da Barca da Lenha, Travessa do Aterro Novo e Pátio do Aterro, ou então, a denominação, em chinês, “K’iu Châi T’âu” (橋仔頭, significando “K’iu Châi”, pontinha ou pequena ponte; e, “T’âu”, início ou começo), cujo nome já caiu no esquecimento, dado que a pontinha deixou de existir há muito tempo.
Além disso, existiram a partir do Tarrafeiro, em épocas diferentes, vários cais, designadamente o cais do Tarrafeiro, localizado ao fundo da Calçada do Botelho, próximo da actual Rua dos Faitiões; o cais do Simão (cujo topónimo, em chinês, “Si Máng Má T’âu” (呬𠵼碼頭) ainda consta da toponímia local, sendo “Si Máng” a transliteração de Simão (6) e, “Má T’âu, que significa cais ou ponte-cais); as tercenas (7), que deram o nome à Rua das Tercenas, embora este nome não corresponda ao topónimo “Kwó Lán Kái”, em chinês (8); e, ainda, o topónimo “Tái Má T’âu Kái” , (sendo “Tái Má T’âu” 大碼 頭 , cais grande, e “Kái” 街, rua), onde é hoje a Rua do Teatro (9).
Presentemente, ainda podemos encontrar, entre a Rua dos Mercadores e a Rua de Camilo Pessanha (anteriormente, Rua do Mastro), muitas casas antigas, de um ou dois pisos, construídas ao longo de estreitas e sinuosas vielas, em terreno resultante da fase inicial de aterros que progressivamente se fizeram. A princípio, tais casas não eram de alvenaria, como as de agora, mas sim barracas e casas feitas de material não duradoiro que, de tempos a tempos, eram destruídas por incêndios e, em curto espaço de tempo, renasciam das cinzas novas habitações. Foi naquela zona, designadamente desde o Tarrafeiro, passando pela Praia Pequena até aos novos aterros, que confinavam com a actual Rua das Felicidades, que nasceu o BAIRRO CHINÊS, cujo centro se situava na zona designada por BAZAR ou BAZAR GRANDE.
BAZAR DO BAIRRO CHINÊS
Bazar é um termo adoptado em terras do Oriente para designar um mercado em geral e, às vezes, feira, ou então, uma rua de lojas. Outrora, existiram alguns bazares em Macau, dos quais se destacou o Bazar Grande, cujo nome foi dado pelos portugueses a uma zona onde predominava o comércio da população chinesa. Além deste bazar, havia também o Bazarinho, que ia da Travessa do Mata Tigre até à Calçada Eugénio Gonçalves. Eram estes dois os mais conhecidos, não obstante ter havido também outros bazares que surgiram com os novos aterros, nomeadamente o Bazar do Pagode.
Conforme referido num relatório do Serviço de Saúde de Macau, dos anos 1865 a 1867, o Bazar “é um emaranhamento de ruas estreitas e de casas chinas pequenas, escuras e húmidas. A isto acresciam os alpendres caprichosos que impediam a entrada do ar e da luz, os variados objectos de venda que se expunham fora das lojas até impedir o trânsito e o nauseabundo cheiro proveniente dos canos de despejo que seguem pelo meio das ruas e eram, como estas, cobertos de grandes lages mal unidas e que deixavam fendas e buracos entre si”.
Apesar de esforços desenvolvidos pelo governo de então, no sentido de modificar as condições higiénicas dentro daquele populoso bairro, apenas alguns melhoramentos foram conseguidos, porquanto a população chinesa, arreigada aos seus hábitos, achava muito normal aquela forma de vida.
Num outro relatório a respeito do estado de saúde do Bazar, em 1870, referia que “no Bazar, onde residem os chinas, que ali têm grande parte do seu comércio e todas as espécies de estabelecimentos, as causas de insalubridade são numerosas, ainda que notavelmente diminuídas durante o governo do sr. Conselheiro Coelho do Amaral. Encontram-se nesse grande bairro chinês muitos focos de infecção nas travessas, becos e pátios recônditos. Não será fácil obter ali grandes melhoramentos por demandarem muita despesa, e em consequência dos usos e costumes do povo chinês, que pode ser considerado naturalmente imundo”.
Apesar das intervenções pontuais do governo para a melhoria das condições sanitárias do Bazar, a situação manteve-se praticamente inalterável até à publicação do Decreto de 26 de Março de 1908, para regular a execução das Obras de Saneamento do Bazar Chinês e à criação da Comissão Administrativa das Obras de Saneamento do Bazar Chinês.
INTEGRAÇÃO DA POPULAÇÃO CHINESA NA CIDADE CRISTÃ
Por Portaria nº 51, datada de 14 de Setembro de 1867, foi nomeada uma Comissão para apresentar um relatório ao governador Ponte e Horta, para formular a formação de um corpo especial de Obras Públicas. No extenso e bem elaborado relatório, mencionou-se a existência de dois bairros, “como que formando duas cidades distintas: a primeira mais populosa, o Bazar, habitada exclusivamente pelos chinas, aferrados às suas tradições e aos seus preconceitos; vexados sob o domínio dos mandarins; um emaranhado de ruas estreitas, imundas, sem condições higiénicas, e apinhadas de casas de má aparência e pouco salubres; a segunda, a cidade cristã, com as suas velhas portas (10), verdadeiras barreiras ao progresso …”. Foi o Conselheiro Coelho do Amaral, durante o seu governo, que “fez desaparecer as portas da cidade; ligou com bons caminhos o bairro cristão com o china e os diferentes bairros entre si; alargou os limites da cidade; alterou todo o sistema de viação; construiu pontes; abriu novas ruas …”. Foram ainda propostas outras medidas importantes no intuito de acabar com a separação daqueles dois bairros, de forma a integrar toda a população, as quais incluíam, designadamente “aproveitar a actividade dos chinas, de que muito se pode esperar, tanto para o comércio como para a indústria…; fazer desaparecer o preconceito da inconveniência de conceder aos chinas o adquirir propriedades…; aumentar os rendimentos públicos pelos foros que pagam os terrenos concedidos e as novas edificações; alargar a cidade, levantando novos bairros, de melhor aparências e cheias de vida…; e, finalmente, interessar os chinas nas obras públicas, a ponto de lhes prestarem grande auxílio em capitais e trabalho.”
Foi a partir de então que os chineses mais abastados começaram a adquirir propriedades dentro da chamada cidade cristã, em zonas mais nobres, bem como construir as suas mansões nos sítios onde achavam existir melhor “fengshui” e, gradualmente, foram deslocando os seus estabelecimentos para dentro da cidade, por ser mais seguro que na zona do Bazar.
Já antes disso, a permissão a estrangeiros para comprarem ou edificarem casas e possuírem qualquer terreno em Macau, mediante o pagamento de foro à Fazenda Pública, tinha sido autorizada pelo governador Ferreira do Amaral em 1846, em virtude da Carta de Lei de 2 de Maio de 1843.
POLÍCIA DO BAZAR
Com o crescimento da população chinesa, o bairro do Bazar passou a ser habitado maioritariamente por chineses, não só simples operários, como também comerciantes chineses, incluindo os mais abastados, que tinham os seus negócios sobretudo na então via principal, usualmente designada rua grande do Bazar (11). O Bazar era também frequentado por aqueles que “não sendo aqui estabelecidos, nem tendo ocupação conhecida, se aplicam ao roubo, jogo e outros exercícios próprios de ociosos e vadios, sem que contudo a Polícia os possa bem conhecer ou distinguir dos que são aqui estabelecidos”. Muitos desses vadios viviam numa zona conhecida por Tercenas do Bazar e quando o governador Ferreira do Amaral teve conhecimento de que eles viviam em tercenas fechadas, mandou publicar um Edital, datado de 12 de Fevereiro de 1849, nos seguintes termos: “Faço saber, que achando-se mais de metade das tercenas do Bazar fechadas e cercadas, servindo de habitação a chinas pela maior parte vadios, e sem ocupação conhecida, os quais indevidamente e com notável prejuízo público ocupam assim aquele lugar, que fora destinado pelo Governo a quem pertencem as mesmas tercenas, para servir de mercado público; e cumprindo que quanto antes se remova tal inconveniente; hei determinado que os chinas que actualmente ocupam as referidas tercenas, as despejem dentro do prazo improrrogável de oito dias contados desta data, devendo no fim dele, ficar as ditas tercenas abertas e limpas… , ficando por uma vez entendido que mais se não permitirá que naquele lugar se fixe habitação permanente …”.
Era, por conseguinte, preocupante a questão de segurança no Bazar, devido à presença de chineses vindos de localidades circundantes, geralmente por mar, à procura de uma vida melhor, acabando geralmente por se tornarem vadios e mendigos, e mesmo até, praticar roubos para a sua subsistência. Por esse motivo, a Procuratura teve que tomar as medidas que fossem necessárias para proteger os habitantes chineses do Bazar, como por exemplo, num despacho de 18 de Março de 1851, intimidou “o principal cabeça de rua (12) para dar semanalmente na Procuratura uma lista de todos os chinas vadios, e de carácter suspeito, de que ele tivesse notícia”.
Face a estas circunstâncias, em 1857, o negociante chinês Au Ieong Peng (歐陽炳) formou uma pequena guarda destinada a vigiar e proteger os bens que possuía no Bazar. Subsequentemente, Bernardino de Senna Fernandes e alguns abastados chineses também se juntaram para aumentar essa guarda. Como se destinava essencialmente a zelar e proteger o Bazar, onde “lanchaes” (13) praticavam roubos e provocavam desacatos, essa guarda ficou conhecida por Guarda de Polícia do Bazar. Por Portaria Real de 14 de Outubro de 1857, foi nomeado Comandante desta guarda, Bernardino de Senna Fernandes, com honras de Capitão. Em 18 de Julho de 1861, também por Portaria Real, foram-lhe concedidas as honras de Major, conforme comunicação feita pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar.
Para assegurar a segurança, o governo cobrava aos habitantes chineses uma contribuição, como consta do Balancete da Caixa Geral da Província de 1872, publicada no Boletim da Província, sob a rubrica “Contribuição dos chinas para a polícia”.
INCÊNDIO NO BAZAR
No dia 4 de Janeiro de 1856, deflagrou “um terrível incêndio, como nunca antes se viu nesta pequena cidade. O fogo começou pela uma hora e três quartos numa das boticas chinas no centro do bazar. O vento, que soprava um pouco fresco do norte, fez com que a chama espalhasse com extraordinária velocidade por todos os lados do bazar. Às 5 horas, mudando o vento para leste, o fogo avançou com a maior força sobre as boticas do Matapau. Às 6 e meia tornou outra vez ao norte, e o fogo foi progredindo pelas travessas de S. Domingos, rua de Quintal e a travessa do Tronco. O ex-convento de S. Domingos esteve a ponto de arder, porém uma bomba colocada na igreja fez maravilhosos efeitos. O incêndio durou por toda a noite, e consumiu quase todo o bazar, deixando só de pé algumas boticas da parte do norte e do sul”.
De acordo com uma reportagem, neste terrível incêndio arderam cerca de mil e quinhentas casas, incluindo mais de 600 lojas, com avultados prejuízos e algumas perdas de vida. No entanto, não foi o único incêndio de grandes proporções. Há notícias de mais incêndios, nomeadamente um outro que ocorreu em 13 de Novembro de 1893, e que destruiu o mercado do Bazar.
Consta que, quatro anos depois, os comerciantes Lou Kau ou Lu-Cao (盧九) e Vong-Atai ou Vong Tâi (王帝) requereram ao Leal Senado de Macau para a construção de um mercado no mesmo local. Não nos parece que este pedido fora aprovado, porquanto o Leal Senado, num edital de 1901, anunciou a construção de um novo mercado, informando que “… logo que começarem os trabalhos de demolição dos prédios e construção do mercado, devendo a venda de hortaliças ter lugar nas circunvizinhanças e a carne de porco às portas dos respectivos estabelecimentos de porqueiros, não sendo permitida venda de qualquer destes géneros no Largo de S. Domingos, do lado da Rua do Soriano, na Rua do Soriano, na Rua dos Mercadores do lado que confina com a Rua do Soriano, na Rua do Mercado, Travessa das Frutas, Beco do Poço e Beco do Porqueiro, visto que vão ser demolidos os prédios ali situados”. A construção do novo mercado ficou, portanto, a cargo do Leal Senado, tendo a obra sido arrematada pelo valor de $20.350 patacas, em 1904. O projecto do mercado fora elaborado pelo arquitecto espanhol José Maria Casuso, que naquela época também foi projectista dos bairros de S. Lázaro e de Táp Siac.
EXPROPRIAÇÕES
Em 1918, pelas Secretarias da Procuratura Administrativa dos Negócios Sínicos e Administração do Concelho de Macau, através de um anúncio publicado em Boletim Oficial nº 8, “se fez público que, tendo sido determinada por utilidade pública e urgente a expropriação dos prédios urbanos existentes no bairro chinês desta cidade, que estejam avançados, no todo ou em parte, sobre a linhas exteriores das novas vias públicas traçadas no plano de melhoramentos do mesmo bairro, determinação essa feita por Decreto de 26 de Março de 1908, publicado no Boletim Oficial do Governo desta Província, nº 21 de 23 de Maio do mesmo ano e nos termos das leis no mesmo decreto designadas, prédios urbanos a expropriar de que fazem parte os sob os números de polícia: 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18, 20, 24, 26, 28, 30, 32, 34, 36, 38, 40, 42, 44, 46, 48, 50, 52. 54, 56, 58, 60, 62, 64, 66, 68, 70, 72, 74, 78, 80, 82, 84, 112, 118, 120, 122, 11, 13, 15, 107, 107, 111, 115 e 117 da Rua dos Mercadores (14); 124, 126, 128 e 130 da Rua do Matapau; 1, 3, 5, 7, 9, 11, 13, 15 e 17 da Travessa do Aterro Novo; 22 da Rua da Felicidade; 60, 62, 64, 100, 102, 104, 106 e 108 da Rua das Estalagens; 30 da Travessa da Porta; 2, 4, 6 e 8 da Rua do S. Paulo; 26 e 30 da Travessa dos Algibebes; e 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18, 20, 22, 24, 26, 28, 30, 11, 13, 29, 31, 31ª, 33, 35, 37, 39, 41, 41ª, 43, 45 e 47 da Rua do Mastro; e o Pagode de Seong-ka-hong, sito nesta última rua sem número de polícia … “ foram chamados todos os interessados nos supramencionados prédios para comparecerem nas secretarias das ditas repartições, instaladas no prédio nº 1 da Rua Central, a fim de ali examinarem os documentos e planta respectiva e em face deles fazerem as reclamações e observações que julgarem conveniente acerca da supra designada expropriação”.
Constatámos que, apesar da urgente expropriação acima referida e mesmo depois de os referidos prédios terem sido adjudicados ao Estado, a Comissão Administrativa das Obras de Saneamento do Bairro Chinês, teve de publicar, em 1921, avisos por forma a intimidar proprietários a demolir os seus prédios segundo os novos alinhamentos e a remover os materiais e entulhos no prazo de 40 dias.
A expropriação dos referidos prédios resultou da aplicação do Decreto de 26 de Março de 1908, do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, por haver uma urgentíssima necessidade de proceder ao saneamento da cidade de Macau, com vista a acabar com o insalubre bairro denominado Bazar chinês, onde em estreitíssimas ruas se aglomerava uma numerosa população e onde se originavam frequentes epidemias. A melhor forma para levar avante este projecto era proceder à abertura de vias públicas suficientemente largas, bem arejadas e drenadas dentro do bairro, “devendo as ruas novas principais ter uma faixa de 8 metros de largura”, conforme fora determinado. Esta determinação, porém, não foi aplicada às travessas e outras vias secundárias, por isso ainda existem estreitas e desalinhadas vias transversais com cerca de dois metros de largura em vários pontos da antiga zona do Bazar.
A RUA GRANDE DO BAZAR
A “rua grande do Bazar” ou “rua denominada Bazar grande” eram designações utilizadas em meados do século XIX, até mesmo em editais e anúncios judiciais, para se referir à rua principal do Bazar, numa altura em que ainda não estava fixado o topónimo Rua dos Mercadores, em português. A “rua grande”, situada no coração do Bazar, correspondia então ao nome “Tái Kái” (大街), dado pelos chineses (ou seja, “Tái” 大 , grande, e “Kái” 街 , rua).
Verifica-se, no entanto, que esta via, em chinês”, além do topónimo “Tái Kái” (大街), foi posteriormente acrescentado, em meados do século XX (15), o nome “Yêng Têi Tái Kái” (營地大街, que literalmente tanto pode significar “rua grande do acampamento militar” ou “rua grande do bazar”), como consta da placa toponímica, escrita entre parêntesis, por baixo da denominação principal “Tái Kái”. Em virtude de o termo “Yêng Tei” (營地) ter sido indevidamente usado para designar “bazar, mercado ou feira”, há quem diga que tal termo derivou do facto de ter existido naquele local um “acampamento militar” (16), esquecendo-se, porém, que o caracter chinês “Yêng” (營), também significa “comercializar” ou “negociar” e, deste modo, “Yêng Tei” (“Yêng” 營 , comércio, e “Tei” 地 , terreno, lugar ou localidade) seria então “terreno ou localidade destinado a comércio”, estando, deste modo, em conformidade com o termo Bazar, em português, utilizado desde o início. Cremos que toda esta confusão surgiu por utilização indevida ou incorrecta do termo “Yêng Têi” (營地) para designar mercado, bazar ou feira e, sendo bazar ou feira, o termo apropriado será “si cháp” 市集 ou “hôi cháp” 墟集 , como se usa actualmente.
Tanto a Rua dos Mercadores como a Travessa dos Mercadores constam do relatório dos trabalhos da Comissão nomeada por Portaria nº 44, de 12 de Março de 1869, para determinar e fixar de modo definitivo os nomes de todas as vias públicas da cidade. Notámos, no entanto, que diversos nomes de ruas que existiam antes de 1869 não foram incluídos naquele relatório e outros, que estavam listados, deixaram de constar no Cadastro das Vias Públicas de 1905 e no de 1925, por terem sido extintos, por razões diversas, entre as quais, expropriações e demolições de propriedades em que aquelas vias estavam localizadas ou, então, por terem sido substituídos por novas designações.
Os nomes da vias públicas, constantes do referido relatório de 1869, apenas estão escritos em português, sem qualquer referência em chinês. Apesar desta omissão, constatámos em anúncios judiciais e em editais traduzidos para a língua chinesa que a Rua dos Mercadores tinha duas designações em chinês: o troço que ia desde a junção entre a Rua das Estalagens, Rua dos Ervanários e Rua de Nossa Senhora do Amparo até imediações da Travessa dos Algibebes era designado “Sék Cháp Mun” (17) e, a seguir, é que começava “Tái Kai”, a rua grande. O nome “Sék Cháp Mun” (石閘門) provém de um portal ou porta de pedra, que existiu naquela localidade e que outrora servia para impedir a entrada na cidade de chineses indesejados, vadios e desconhecidos. Numa das transversais da Rua dos Mercadores, existe a Travessa dos Mercadores, que dantes era simplesmente designada, em chinês, “Sâp Pát Kán” (十八間) , cujo nome revela ter existido naquela Travessa um conjunto de 18 (“sâp pát”) estabelecimentos comerciais. Embora a Travessa continue a ser conhecida por “Sâp Pát Kán” (十八間), foi-lhe aditado, em meados do século passado, um novo topónimo, em chinês, passando a ser “Seong Yan Hóng” ( 商人巷 , ou seja, “Seong Yan” 商人 , Negociante ou Comerciante, e “Hóng” 巷 , Travessa), como consta do Cadastro das Vias Públicas de 1957.
Outrora, a Rua dos Mercadores foi, sem dúvidas, a mais importante e movimentada “rua grande do Bazar”, pois era onde os principais comerciantes chineses tinham os seus negócios, designadamente os chamados bancos chineses ou cambistas. Após muitas vicissitudes, a Rua dos Mercadores continua a ser, tal como no passado, uma importante zona de comércio, situada a dois passos do coração da cidade – o Largo do Senado.
Texto, fotos e respectivas legendas de MV Basílio. Salvo indicação em contrário, as fotos antigas foram baixadas da internet, designadamente do grupo Antigas Fotos de Macau.
NOTAS:
(1) A zona do Tarrafeiro é designada, em chinês, “Sá Lán Châi” (沙欄仔 , ou seja, “Sá Lán” 沙欄,barreira de areia; e, “Châi” 仔 pequena). Tarrafeiro era o pescador que pescava à tarrafa, ou seja, com a rede que se arremessa de lanço.
(2) A Calçada do Botelho começa na Praça de Luís de Camões e no Largo de Santo António e termina na Rua do Tarrafeiro. Além desta Calçada, há ainda a Rua do Botelho e a Travessa do Botelho.
(3) Faitião é um termo derivado do chinês “fái t’éng” 快艇 (“fai” 快 , veloz, rápido; e “t’éng 艇 , um tipo de embarcação ou barco ligeiro utilizado por chineses). Foi dado à via o nome Rua dos Faitiões para comemorar a vitória dos portugueses na insurreição conhecida por Revolta dos Faitiões, motivada pelo lançamento de impostos sobre os barcos ligeiros chineses, no tempo do governador Ferreira do Amaral. Além da dita Rua, que também é conhecida, em chinês, por “Mâi Kái” 米街 (“Mâi 米 , arroz; e, Kái 街 , rua, ou seja, Rua do Arroz), há ainda a Travessa e o Beco dos Faitiões.
(4) O côvado foi uma medida de comprimento usada por diversas civilizações antigas. Era baseado no comprimento do antebraço, da ponta do dedo médio até o cotovelo, variando essa medida de comprimento de povo para povo. O côvado chinês (“ch’ék” 尺 , em cantonense) mede tradicionalmente cerca de 0,371475 metros (usado em Hong Kong e em Macau) ou modernamente cerca de 0,3333 metros (usado na China Continental).
(5) Naquela época o termo “chinas” quer dizer “chineses”.
(6) Este Simão era Simão Joaquim Botelho, cujo nome figura na toponímia de Macau, designadamente Calçada do Botelho; Cais do Simão (em chinês, “Si Máng Má T’âu” 呬𠵼碼頭 , cuja via é actualmente designada Rua do Infante); e Rua do Simão (em chinês, “Si Máng Kai” 呬𠵼街 , nome este alterado para Rua Nova de El-Rei e, depois da implantação da República Portuguesa, novamente alterado para Rua de Cinco de Outubro). Apesar dessas alterações, os nomes, em chinês, “Si Máng Má T’âu” e “Si Máng Kai” ainda constam das respectivas placas toponímicas.
(7) Termo antigo e pouco usado, que significa espaço à beira do rio ou perto de um cais para recolher ou armazenar cereais; doca ou estaleiro.
(8) “Kwó Lán Kái” 菓欄街 (literalmente, rua do mercado de frutas), significando também “kwó lán” 菓欄 os estabelecimentos de revenda de frutas por grosso. Teria lá funcionado um “bazar de fructas”, cujo nome era mencionado em editais do século XIX.
(9) Era habitual naqueles tempos armarem palcos de bambu em terrenos vagos para representações da ópera ou auto cantonense e, por conseguinte, teria lá existido um desses teatros que lá levantaram, no terreno resultante dos aterros. Actualmente, ao longo da Rua do Teatro, existem diversos estabelecimentos de fornecedores de frutas.
(10) As “velhas portas” referem-se às Portas da Cidade, designadamente a Porta de Santo António e a Porta do Campo (também conhecida por Porta de S. Lázaro), que davam acesso à Cidade Cristã. As “velhas portas”, bem como as muralhas da cidade, foram demolidas por ordem do governador Conselheiro Coelho do Amaral.
(11) Há um anúncio judicial, datado de 24 de Setembro de 1861, referente a arrematação em hasta pública de uma casa “sita na rua denominada Bazar grande”, bem como um edital, datado de 7 de Agosto de 1865, em que faz a menção da “rua grande do Bazar”. A “rua grande” é tradução literal da designação, em chinês, “Tái Kái”.
(12) Era designada “cabeça de rua” a pessoa escolhida por moradores de uma rua, a quem competia resolver ou tratar dos assuntos que ocorriam, bem como “registar” os nomes de todos os moradores daquela rua, a fim de impedir estadia de estranhos. Era uma figura que existia na China.
(13) “Lanchaes” (deriva do cantonense “lán châi” 爛仔) era um termo aportuguesado, que então se utilizava em editais e anúncios judiciais, para designar malfeitores.
(14) Apesar dos limitados recursos financeiros do então governo de Macau, a expropriação dos prédios urbanos existentes no bairro chinês, determinada por utilidade pública e levada a cabo pela Comissão Administrativa das Obras de Saneamento do Bazar Chinês, não foi tarefa fácil. Conforme anúncio publicado no Boletim Oficial nº 8, de 1918, pode-se constatar que praticamente todos os prédios existentes na Rua dos Mercadores, que estavam fora do alinhamento traçado para a nova via pública, tiveram que ser expropriados e demolidos. Verificámos que, dentro da Rua dos Mercadores, há prédios que deixaram de existir e no mesmo local não foram erigidos novos prédios, como por exemplo, os prédios números 2 a 6, e 1 a 11, bem como os números 46 e 48 (junto da Travessa dos Becos), talvez com a intenção de, futuramente, alargar também as vias transversais. Actualmente, a Rua dos Mercadores inicia no prédio nº 8, do lado da numeração par, e no prédio nº 13 , do lado da numeração ímpar, um oposto ao outro.
(15) No Cadastro das Vias Públicas de 1905 e no de 1925, a Rua dos Mercadores era apenas designada, em chinês, “Tái Kái” 大街 . A designação “Yêng Têi Tái Kái” (營地大街) foi aditada posteriormente e só a partir de 1957 é que passou a constar do Cadastro das Vias Públicas e Outros Lugares da Cidade de Macau. Por conseguinte, “Yêng Têi Tái Kái” (營地大街) não é um topónimo originalmente adoptado pelos chineses, nem provém de “acampamento militar”, como algumas pessoas alegaram ter lá existido. Conforme explicámos, o termo “Yêng” (營), também significa “comercializar” ou “negociar” e, “Tei” (地) quer dizer “terreno, lugar ou localidade”), devendo, assim, ser interpretado como “terreno ou localidade destinado a comércio”
(16) O que existiu, de facto, foi um aquartelamento militar que se instalou no edifício do Convento de S. Domingos, expropriado pelo governo, após a expulsão das ordens religiosas no ultramar português, em 1834. Aquele aquartelamento não era “Yêng Tei” ou “acampamento”, visto que os militares estavam instalados dentro de um edifício.
(17) Não existem vestígios quanto à localização do portal de pedra, demolido em data desconhecida. Apesar disso, mesmo nos anos 50-60 do século passado ainda se ouvia os velhos residentes chamar “Sék Cháp Mun” àquele troço entre o início da Rua das Estalagens e a Travessa dos Algibebes.
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