PROCISSÃO DO CORPO DE DEUS EM MACAU
Texto, fotografias e legendas de Manuel V. Basílio (Macau)
Exposição do Santíssimo Sacramento no pátio do Colégio Diocesano de S. José para 24 horas de Adoração até à realização da Procissão do Corpo de Deus. Foto Manuel V. Basílio)
As cerimónias do Corpo de Deus, ou Corpus Christi, ou mais precisamente, a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, decorrem habitualmente na quinta-feira seguinte a Domingo de Pentecostes, 60 dias depois da Páscoa, tendo este ano ocorrido no dia 20 de Junho.
As celebrações de Corpus Christi como forma de louvar e adorar a Sagrada Eucaristia remontam ao século XIII, ao tempo do papa Urbano IV. A instituição da procissão foi promulgada pelo papa João XXII, em 1317. Desconhecemos em que ano ou século se iniciaram as celebrações da Solenidade e Procissão do Corpo de Deus em Macau. Temos, no entanto, conhecimento de que, já no tempo do governador Ferreira do Amaral, a procissão era solenemente realizada, porquanto o historiador Montalto de Jesus, no seu livro Macau Histórico, relata o seguinte incidente:
“A 7 de Junho de 1849, a procissão de Corpus Christi, revestida de pompa da Igreja e do Estado, seguia pelas ruas de Macau, quando, no meio da multidão, um desconhecido que assistia à celebração, de uma proeminente e vantajosa posição, desafiou o uso dos países católicos romanos em tais solenidades, mantendo o chapéu posto, porque era protestante – James Summers, professor da Escola Colonial Chaplain, de Hong Kong. Vários cavalheiros protestantes que, por cortesia, mantinham a cabeça descoberta ordenaram-lhe que retirasse como os outros o chapéu, se quisesse evitar consequências desagradáveis. Mas ele preferiu ver o espectáculo e exibir o seu fanatismo. Um padre que passava pediu-lhe educadamente que tirasse o chapéu ante a hóstia que se aproximava e, ao ser ignorado, chamou a atenção de Amaral, que mandou uma ordenança com o mesmo pedido, tendo o dito personagem mantido a recusa. Por ordem de Amaral, Summers foi, por isso, detido e encarcerado na casa da guarda”.
Seguiram-se as negociações para a libertação de Summers, não tendo as partes chegado a um acordo aceitável, visto que o caso tinha sido entregue à justiça. Na tarde do dia seguinte, uma força do comando de Henry Keppel, Capitão de Mar e Guerra da Marinha Inglesa, conseguiu entrar no Senado e surpreender a Guarda, fazendo fogo sobre ela, tendo matado o soldado Roque Barrache e ferido dois outros, bem como o Sargento Joaquim de Souza, Comandante da Guarda. Em seguida, a mesma força foi à cadeia, anexa ao Senado, arrebatar o preso James Summers e levá-lo a um barco, que rumou, de imediato, a uma frota inglesa, ancorada ao largo de Macau. Gerou-se então uma questão diplomática, que teve de ser resolvida entre Lisboa e Londres.
É TRADICIONALMENTE REALIZADA EM MACAU A PROCISSÃO DO CORPO DE DEUS ?
Não se pode afirmar que a procissão do Corpo de Deus é tradicionalmente realizada em Macau, à semelhança das principais procissões que são mantidas com regularidade, tais como a procissão do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos e a procissão de Nossa Senhora de Fátima, devido às interrupções que ocorreram ao longo do tempo, designadamente após a implantação da República, em 1910. A partir de então aquela procissão deixou de percorrer as ruas desta cidade, remetendo-se as cerimónias ao interior de igrejas. Após períodos de interrupção, a procissão regressou às ruas até que, nos anos 70, mais concretamente a partir de 1974, voltou a ser interrompida, talvez motivada por situações ocorridas em Portugal, na sequência da Revolução dos Cravos.
RESTABELECIMENTO DA PROCISSÃO DO CORPO DE DEUS EM MACAU
Após décadas de interrupção, em 2017, o Bispo da Diocese, D. Stephen Lee, decidiu restabelecer as celebrações da Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo, que culminaram com a realização de uma procissão, que percorreu o mesmo itinerário de outrora.
Tal como no ano anterior, a procissão do Corpo de Deus não se realizou no próprio dia, 20 de Junho deste ano, tendo sido adiada para o domingo passado, dia 23 de Junho, porquanto, após a transição de soberania, esta festividade deixou de figurar no calendário de feriados de Macau.
Este ano, o programa da celebração do Corpo de Deus constava de:
– 24 horas de Adoração: dia 22 de Junho (sábado), a partir das 17:30 horas até dia seguinte, 23 de Junho (domingo), em que o Santíssimo Sacramento esteve exposto no pátio do Colégio Diocesano de São José, localizado na zona tardoz do Paço Episcopal;
– Procissão Eucarística.
Ao fim da tarde de domingo, por volta das 18:00 horas, iniciaram-se os preparativos para a Procissão Eucarística, findo os quais, o Bispo da Diocese levou a custódia com o Santíssimo Sacramento desde o pátio do Colégio Diocesano de São José até ao andor, previamente colocado junto ao portão da Sé Catedral. Após a cerimónia de colocação da custódia com o Santíssimo Sacramento no andor, deu-se início à procissão, que percorreu o Largo e Rua da Sé, descendo então pela Travessa do Roquete e continuando depois pelo Largo do Senado até ao Largo de S. Domingos. Ali, a custódia com Santíssimo Sacramento foi colocada num altar improvisado, mesmo em frente ao portão principal da igreja de S. Domingos, junto ao qual o Bispo da Diocese proferiu breves palavras, em “putonghua” (isto é, em mandarim), designadamente para explicar o significado de “Corpus Christi”, terminando com uma benção solene a todos os presentes. Em seguida, foi retomada a procissão, regressando à Sé Catedral pela Travessa do Bispo.
A PROCISSÃO DO CORPO DE DEUS DE OUTRORA, EM MACAU
A tradição da procissão do Corpo de Deus é mantida em muitos países e também em localidades de Portugal, designadamente em Lisboa, onde anualmente se realiza um majestoso cortejo processional, que é escoltado por cavaleiros em trajo tradicional e com os cavalos bem arreados e engalanados, bem como por representantes dos diversos ramos das Forças Armadas e corporações de segurança, além da participação de irmandades, confrarias das diversas paróquias e demais acompanhantes.
Semelhante tradição existiu em Macau, sobretudo no século XIX, como se pode constatar em Ordens mandadas publicar pelo Governador da província. Reproduzimos a seguir uma dessas Ordens, datada de 3 de Junho de 1876, cujo programa é bem elucidativo:
QUARTEL GENERAL DO GOVERNO DA PROVÍNCIA DE MACAU E TIMOR
Macau, 3 de Junho de 1876
ORDEM À FORÇA ARMADA
Sua Exª. o Governador da província de Macau e Timor manda publicar o programa que se deve observar nesta cidade na procissão do Corpo de Deus, no dia 15 do corrente mês, para que tenha a devida execução na parte que diz respeito aos corpos da guarnição, fortalezas e navios de guerra.
PROGRAMA
1º – A procissão sairá da Sé Catedral às 5 horas e meia da tarde.
2º – São convidados a acompanhá-la as autoridades, o Leal Senado da Câmara, a Estação Naval, os oficiais militares de 1ª e 2ª linha, os empregados públicos, comendadores e cavaleiros de ordens militares, o corpo consular estrangeiro e todas as mais pessoas que quiserem concorrer a este acto de devoção.
3º – Acompanharão também a procissão os párocos das freguesias com as suas respectivas cruzes, todo o clero, os seminaristas, irmandades e confrarias com as suas cruzes e estandartes.
4º – Um mestre de cerimónias indicará os lugares na igreja, e na procissão, aos que acompanharem, a fim de evitar confusão.
5º – O itinerário da procissão será: Rua da Sé, Largo do Senado, Rua de S. Domingos, Travessa do Bispo, recolhendo à Catedral.
6º – Na fortaleza do Monte se darão duas salvas de 21 tiros: a primeira quando da porta da Sé sair o pálio, a segunda à entrada.
7º – O serviço da guarnição será feito de grande uniforme, e as fortalezas e os navios nacionais embandeirarão como é do costume.
8º – O 1º Batalhão do Regimento de Infantaria do Ultramar, na máxima força disponível, formará a guarda da procissão e a guarnição da Estação Naval com o Corpo da Polícia dará as guardas da cidade neste dia até ao recolher da procissão, sendo a guarda do templo fornecida pelo Corpo da Polícia.
9º – A ordem a observar no préstito será o seguinte:
1º – Cruz e Confraria de N. S. de Boa Morte
2º – Confraria de N. S. de Boa Viagem
3º – Confraria de N. S. dos Remédios
4º – Confraria de N. S. da Conceição
5º – Confraria de N. S. do Rosário
6º – Confraria do SS. Sacramento
7º – Ordem Terceira de S. Francisco
8º – Cruz da freguesia de Sto. António
9º – Cruz da freguesia de S. Lourenço
10º – Cruz da freguesia da Sé
11º – Seminário Diocesano
12º – Comendadores e cavaleiros com mantos
13º – Cruz do cabido e clérigos com capas
14º – O Santíssimo Sacramento. Irão ao pálio os comendadores e cavaleiros previamente convidados
15º – O estandarte do Leal Senado
16º – S. Exa. o Governador e o seu Estado Maior, o Conselho do Governo, o Leal Senado, o Corpo Consular estrangeiro, os Juízes, a Junta da Fazenda, os Oficiais efectivos e reformados, os Oficiais das outras classes, os Juízes de Paz, e os empregados públicos, fechando o préstito a guarda da procissão.
O Secretário-geral,
Diogo de Macedo
(Texto de Manuel V. Basílio)
Notas:
Fotografias e legendas de Manuel V. Basílio
O Bispo da Diocese, D. Stephen Lee, fez uma breve alocução antes de levar a custódia com o Santissimo Sacramento até junto ao andor, colocado à porta da Sé Catedral. Foto: Manuel V. Basílio
O Bispo da Diocese leva a custódia com o Santíssimo Sacramento desde o pátio do Colégio Diocesano de S. José até junto do andor, colocado à porta da Sé Catedral. Foto: Manuel V. Basílio
Uma paragem da procissão junto à igreja de S. Domingos para uma breve cerimónia. Foto: Manuel V. Basílio
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
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