Cronicas Macaenses

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Conheça a história do prédio que deu nome a três ruas em Macau

Em mais um contributo do Manuel V.Basílio com seus bons artigos sobre a história Macau, onde reside, vamos saber como um prédio deu nome a três vias públicas. Para aqueles, como eu, há bom tempo ausente de Macau, ou que pouco circulava naquelas bandas, junto um pedaço do mapa da Google para se localizarem.

Mapa do Google – clicar para aumentar

Localização do Mercado de São Lourenço – clicar para aumentar

UM PRÉDIO QUE DEU NOME A TRÊS VIAS PÚBLICAS

Texto, legendas e fotos de autoria de Manuel V. Basílio

Mercado de S. Lourenço, visto do lado da Rua dos Armazéns, o qual está construído no terreno originalmente ocupado pelo palácio do Barão, demolido em 1938. Foto Manuel V.Basílio

É frequente verificar que topónimos, em português, de vias públicas de Macau, nem sempre têm a respectiva correspondência em chinês. Exemplos não faltam em que o nome de uma personalidade é atribuída a uma via, no entanto, em chinês, mantém-se a designação habitualmente usada pela comunidade chinesa, de acordo com as características marcantes, vivências ou particularidades do local em causa, e este facto pode constituir um elemento válido para o conhecimento do passado de uma localidade. É de louvar que esta especificidade, respeitada pela administração portuguesa, enquanto governante, demonstrava que cultura e tradições chinesas foram tidas em conta aquando da atribuição de topónimos a uma nova via ou quando o topónimo em português de uma via existente é substituído por outro.

Nas discrepâncias de topónimos em ambas as línguas, é interessante verificar como um simples prédio de 3 pisos, que existiu na Rua da Prainha, deu nome, em chinês, a 3 vias públicas, sem as respectivas correspondências em português.

Do lado direito, a Rua dos Armazéns, e do lado esquerdo, a Rua de João Lecaros. Foto Manuel V.Basílio

No sítio chamado Prainha (devido à existência de uma pequena praia), a norte da Praia do Manduco, havia uma feitoria que pertencia a Francisco António de Seabra, que veio do Brasil em 1819, e aqui se estabeleceu, na qual possuía um cais onde acostavam navios, geralmente para serem reparados. Com o assoreamento e subsequentes aterros, a Prainha deixou de existir, restando actualmente, como reminiscência, apenas os topónimos Rua da Prainha, Calçada da Feitoria e Travessa do Cais.

A Rua da Prainha é designada, em chinês, por “sám ch’âng lau kai” (三層樓街, literalmente, Rua do Prédio de Três Pisos), que começa na Calçada de Francisco António, do lado da numeração ímpar e na Rua de Francisco António, do lado da numeração par, e termina na Calçada da Feitoria, junto da Travessa do Cais.

Devido à singularidade, nomeadamente por ser um prédio que se destacava naquela zona, esse prédio de três pisos era, naqueles tempos, um ponto de referência à zona envolvente, de forma que a Calçada de Francisco António (dado em homenagem ao referido Francisco António de Seabra), que começa junto à Rua da Prainha, é designada por “sám ch’âng lau ché hóng” (三層樓斜巷, isto é, Calçada do Prédio de Três Pisos).

Além dessas duas vias que têm o prédio de três pisos como referência, há ainda uma outra mais acima, denominada Rua do Barão, que começa entre a Calçada do Januário e a Rua de Inácio Baptista e termina entre a Calçada da Feitoria e a Rua de S. José, e cuja denominação, em chinês, nada tem a ver com o Barão. Tal como as anteriores vias, a referência ao prédio de 3 pisos mantém-se, pois a Rua do Barão é designada por “sám ch’âng lau seong kai” ( 三層樓上街, ou seja, a Rua de Cima do Prédio de Três Pisos).

A Calçada do Januário é designada, em chinês, por “tá tit ché hong” (打鐵斜巷, ou seja, Calçada do Ferreiro). Foto: Manuel V. Basílio

O prédio de três pisos já não existe e com os subsequentes reaproveitamentos dos terrenos na zona da Prainha, nem vestígios da sua localização podem ser encontrados. As grandes propriedades que existiam ao longo da Prainha e da Praia do Manduco foram, no decorrer dos tempos, repartidas ou loteadas, e sobretudo a partir dos anos setenta do século passado, enormes prédios unifamiliares, arquitectonicamente elegantes, foram, a pouco e pouco, vendidos e demolidos para dar lugar ao frenético desenvolvimento, com a construção desordenada de edifícios inestéticos, na mira de obtenção de lucros rápidos por parte de empresas de fomento imobiliário ou investidores.

Como se pode constatar, enquanto a administração portuguesa homenageava ilustres personalidades, tanto o referido Francisco António de Seabra, como o Barão, os respectivos topónimos em chinês não correspondem aos ditos nomes em português, tendo desde então sido respeitadas as designações tradicionalmente em uso no seio da comunidade chinesa e mantido o prédio de três pisos como ponto de referência.

Calçada do Januário, vendo-se, ao fundo, o Mercado de S. Lourenço. Foto: Manuel V. Basílio

Merece aqui fazer um breve referência ao Barão. Afinal, quem era esse Barão, dado que houve mais Barões em Macau. Esse Barão era o Barão de S. José de Porto Alegre, um título nobiliárquico conferido a Januário Agostinho de Almeida, em 1815, o qual tinha sido criado no ano anterior pelo príncipe regente de Portugal, D. João (que veio a ser D. João VI de Portugal).

O palácio do Barão, porém, não se situava na Rua do Barão. No livro Toponímia de Macau, Volume II, descreve que “o palácio do barão de S. José de Porto Alegre ficava na Rua da Praia do Manduco, nº 2”, o qual “por falecimento do seu proprietário em 1825, veio a pertencer a Bernardo Estêvão Carneiro”. Falecido este em 15-8-1854, ficou pertencendo à sua mulher Ana Maria da Silva Carneiro e, por morte desta, à sua filha Ana Josefa Carneiro de Lecaroz; falecida esta em 10 de Março de 1900, passou para o seu marido, o espanhol Juan Lecaroz; este faleceu sem herdeiros em 7 de Setembro de 1904, sendo então arrolado a requerimento do Ministério Público e adquirido pelo Governo da Colónia, em 15 de Setembro de 1919, pela quantia de $50.000,00. Este palácio, por ameaçar ruína, foi demolido em 1938”.

A placa toponímica no canto superior direito assinala o início da Rua da Praia do Manduco, do lado da numeração ímpar. A rampa é a Calçada do Januário. A placa toponímica colocada no lado esquerdo, por cima da loja 7 Eleven, indica o início da Rua de João Lecaros. Foto: Manuel V. Basílio

Para certificar o local onde ficava o dito palácio, desloquei-me então até ao início da Rua da Praia do Manduco e lá encontrei a numeração 4-A e numerações policiais dos prédios seguintes. O prédio nº 4 já não existe, creio que foi demolido para dar maior espaço a um dos acessos ao Mercado pelo lado leste, da Rua da Praia do Manduco e, assim, o prédio nº 2 do Barão deveria situar-se no terreno onde actualmente está implantado o novo Mercado de S. Lourenço (cujo edificio é agora denominado Complexo Municipal do Mercado de S. Lourenço), inaugurado em 25 de Novembro de 2009, em substituição do anterior mercado com o mesmo nome. Por conseguinte, a entrada principal do palácio ficava no quarteirão ocupado pelo actual mercado, no começo da Rua da Praia do Manduco e da Rua de João Lecaros, que entroncam com a Calçada do Januário. Esta Calçada, também dedicada ao Barão, Januário Agostinho de Almeida, começa na Rua do Barão e termina ao fundo da rampa frente ao mercado. Tal como sucede com muitas outras vias, a Calçada do Januário é designada, em chinês, por “tá tit ché hong” (打鐵斜巷, ou seja, Calçada do Ferreiro), portanto, nada tem a ver com o nome, profissão ou ocupação do Barão, pois ele, em Macau, era um abastado negociante e um dos maiores armadores.

Devido à sua participação, como vereador, no Senado, e tendo o seu genro, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, mais conhecido por Ouvidor Arriaga, a desempenhar funções na Ouvidoria, essas privilegiadas situações permitiram-lhe exercer grande influência e domínio na política e na economia, no primeiro quartel do século XIX, até ao seu falecimento, a 19 de Julho de 1825, quando se encontrava em Calcutá, já debilitado, ao qual teriam contribuido os desaires sofridos nos seus negócios e investimentos na Índia, e provavelmente as angústias derivadas do prematuro falecimento do seu genro, o Ouvidor Arriaga, ocorrido pouco mais de meio ano antes, a 13 de Dezembro de 1824, apenas com 48 anos de idade.

O primeiro prédio do lado esquerdo, onde se vê BANK OF CHINA, é o prédio nº 1 da Rua da Praia do Manduco cuja placa toponímica está colocada no canto superior esquerdo. Foto: Manuel V. Basílio

Carlos Lemos

Após quase dois séculos, ainda podem ser referenciadas algumas famílias descendentes do Barão, tais como Lemos, actualmente residentes no Canadá, Azedo e Oliveira, residentes em Macau, bem como uma das famílias Rosário, também em Macau. Na regular convivência com os meus velhos amigos Arnaldo e Carlos Lemos, nos tempos da nossa juventude em Macau, tive o ensejo de conhecer o tio-avô deles, Alfredo Augusto de Almeida, tetraneto do Barão, falecido em 1971, sem deixar descendente. A respeito dele, foi publicado, em Janeiro deste ano, um interessante artigo no Hoje Macau, escrito pelo Director desse diário, José Simões Morais, que merece ser lido, cujo

link é: https://hojemacau.com.mo/2017/01/13/o-auto-didacta-botanico-e-naturalista-alfredo-augusto-de-almeida/

Quero aqui expressar o meu agradecimento ao amigo Carlos Lemos (cujo nome completo é Carlos Eugénio de Almeida Ferreira de Lemos) pelas informações e esclarecimentos que me prestou a respeito do Barão. (Manuel V. Basílio)

Interior do actual Mercado S.Lourenço. Foto: Manuel V. Basílio

A Rua do Barão é designada, em chinês, por “sám ch’âng lau seong kai” ( 三層樓上街, ou seja, a Rua de Cima do Prédio de Três Pisos). Foto: Manuel V. Basílio

Um troço da Rua do Barão. Do lado esquerdo vê-se uma antiga e enorme propriedade, de que resta apenas o muro, um portão e, ainda, uma porta entaipada, ao fundo. Foto: Manuel V. Basílio

Rua do Barão, vista do lado oposto. Foto: Manuel V. Basílio

A referida porta entaipada, na Rua do Barão. Foto: Manuel V. Basílio

Placas toponímicas. Foto: Manuel V. Basílio

Do lado esquerdo, a Rua de S. José, e do lado direito, a Calçada da Feitoria. Ao centro, o fim da Rua do Barão. Foto: Manuel V. Basílio

No canto superior do edificio de côr verde, há uma placa toponímica que assinala a Calçada da Feitoria. A placa que se vê no edifício de côr laranja marca o fim da Rua do Barão e onde duas pessoas estão subindo, é já na Rua de S. José. Foto: Manuel V. Basílio

A Rua da Prainha é designada, em chinês, por “sám ch’âng lau kai” (三層樓街, literalmente, Rua do Prédio de Três Pisos). Foto: Manuel V. Basílio

Começo da Rua da Prainha. A placa toponímica, colocada no canto superior direito, assinala o início da Rua de Francisco António. Foto: Manuel V. Basílio

Foto: Manuel V. Basílio

Calçada de Francisco António. Foto: Manuel V. Basílio

Pessoas subindo pela Calçada de Francisco António. No lado esquerdo, é o Largo do Aquino. Foto: Manuel V. Basílio

Brasão do Barão de S. José de Porto Alegre. Fonte: miguelboto.blogspot.ca

5 comentários em “Conheça a história do prédio que deu nome a três ruas em Macau

  1. david7821
    04/04/2023

    Thank you for this very interesting article. I am also a descendant of the Baron and have been looking for a photo or painting of the palace. Is the large building, adjoining garden and what appears to be a dock at the center of this painting next to the inner harbor the correct one? https://visualizingcultures.mit.edu/rise_fall_canton_04/gallery_places/pages/cwM_1830c_M975102_TwoBays.htm
    If there are any other paintings or photographs available, I would be very interested in learning about them. Appreciate it. (And apologies for posting in English.)

    • Rogério Sandoli
      29/05/2023

      Muito prazer, David!
      Também tenho interesse em alguma gravura ou pintura do próprio barão. Há um tempo atrás, vi uma pintura de sua segunda esposa.
      Com relação a pedra com as armas do barão, que consta hoje localizar-se no edifício do Senado, recebi a pouco tempo uma foto dela.

  2. Pingback: NOTÍCIA DE JUNHO DE 1972 – TÚNEL NA RUA DA PRAIA DO MANDUCO | nenotavaiconta

  3. Rogério Sandoli de Oliveira
    08/10/2017

    Muito interessante o artigo sobre o barão. Sou descendente dele e possuo o seu sinete. Há referências em escritos da família de que o brasão do barão, esculpido em pedra e que se localizava por cima do portão de entrada do palácio, quando da demolição deste, foi transportado para o Leal Senado de Macau, onde se encontrava pelo menos até a década de 1940. Será que ainda se encontra lá?

    • Muito interessante e prazer ter o teu comentário, ainda mais um descendente do barão. Vou verificar e ver se há uma informação precisa do assunto. Abraços, Rogério P D Luz (complemento: infelizmente, não há nenhuma informação sobre a pedra. Caso surja, avisarei)

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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