Chau-min, conhecido em São Paulo e no Brasil, como yakisoba, palavra de origem japonesa para se referir ao macarrão feito à moda oriental, é tema deste texto da Cecília Jorge escrito em 1993, a recordar os seus tempos de escola no Liceu Infante Dom Henrique, em Macau.
Se frequentar os restaurantes chineses no bairro oriental de Liberdade, em São Paulo, verá que muitos brasileiros consomem fartamente este macarrão chinês de variadas misturas e preço acessível.
RECORDAÇÕES COM CHAU-MIN
um texto de Cecília Jorge publicado na Revista Macau em Outubro de 1993
Parte das memórias de Macau, para quem continua indissoluvelmente ligado a esta terra, passa por sabores, por aromas, e pela saudade dos “chau min” e das “sopas de fita”
A propósito de Liceu, o tema principal desta edição da MACAU, veio-me à lembrança — e ocorrerá decerto a outros que passaram pelo “novo-velho” Liceu Infante D. Henrique, à vista da Praia Grande — a imagem e o gosto inesquecível de algo que os alunos da irrequieta e despreocupada geração dos anos 60 disputavam na pequena cantina então governada pela D. Lúcia Amaral: chau min.
Servida em pratinhos de plástico e em doses de cinco garfadas parcas, mas equivalentes ao preço justo de trinta avos, nunca uma simples massa nos soube tão divinamente, ainda que só frita com rebentos de feijão mungo e tisnado pelo sutate (molho de soja) na frigideira quente (era aquilo a que, precisamente por isso, se chamava tchái-min, ou seja min “de dieta”).
Atribuam-se os encómios ao entusiasmo da juventude. Ou à insaciável fome, também muito associada a ela. Mas de qualquer maneira, o gosto do humilde min (macarrão chinês) tinha decerto algo a ver com a perícia da cozinheira, porque nessa altura não existia ainda o recurso ao gosto apurado artificialmente pelo monossódio, a emprestar paladar ao que por direito não merece… e a facilitar a cirrose lenta do consumidor. Era, sim, a capacidade de fazer valer o vók, a frigideira em forma de calota que faz parte da bagagem dos macaenses.
Pois esse tchái-min, pobrezinho e simples, era uma das causas de parte dos estudantes dos pisos 2 e 3 “voarem” pelas escadarias abaixo em direcção à cantina, mal soava a sineta dos segundo e terceiro intervalos das aulas, para se pouparem ao desgosto de descobrir já deserto de pratinhos o balcão onde as empregadas habitualmente enfileiravam os ditos, a aguardar a freguesia. Ali, agarrado a mais uma garrafa de coca-cola ou de leite de soja, quem quisesse servia-se de mais molho de soja ou de mostarda e de lat-chiu chéong (molho de pimenta), a pasta de malaguetas fabricada pelos chineses que os macaenses continuam a achar inigualável e insubstituível, para o retoque especial de determinados petiscos.
E não era apenas com chau min que a D.Lúcia nos enfeitiçava, porque se fala também com muita saudade do portuguesíssimo pãozinho de leite com fiambre, ou queijo, que os dissidentes do chau-min preferiam. Outros dissidentes, com mais traquejo, arriscavam-se a processos disciplinares por violação das normas de proibição de saída do recinto durante os “chop” (a hora de folga por falta dos professores), saltando pela janela dos lavabos da cantina… por uma fumegante sopa de fitas na zona do Bazar Chinês. Fatal atracção do “Tou Ün“, hoje fechado.
Mas matar a fome ao romper do dia traduz-se também em Macau por bebinca de nabo (ló-pac kou), catupá, apabico, e até chu-cheong-fân, massa de farinha de arroz cozida em vapor que integra o pequeno-almoço tradicional chinês, apaladada com vários molhos, de feijão doce, de amendoim, de mostarda ou com o tal lat-chiu-chéong, salpicando-se ainda com sementes de sésamo torradas.
Ao longo de décadas de diáspora, quem já levantou ferro ancorando noutros portos chora ainda pelo chu-cheong-fân — “massa enrolada em forma de tripa de porco” (na Liberdade, vendida em bandejas de isopor como massa branca de arroz)—, que se aconselha a comer, de preferência, nas tendinhas ao ar livre, junto aos mercados, acompanhada de canja feita de arroz, nata de soja e pistachio, e a mordiscar “diabinhos fritos” (iao chá kuai, no calão cantonense local). Na Horta da Mitra, uma delas, abrindo ainda hoje ao nascer do sol, está há trinta anos a servir operários, estudantes, donas de casa, e funcionários públicos de vários escalões. Gente modesta e doutores. Clientela certa. E a saudade adivinha-se tamanha que já houve quem, à partida, haja pago para se embrenhar na receita e com ela tenha emigrado, mais os necessários utensílios, para fazer reviver o hábito noutras paragens. Uma tendinha destas não dá decerto para fazer negócio, porque o preço de venda, pela singeleza da matéria prima, equivale ao da chuva, mas saber cozinhar tal iguaria poderá ser a via certa para capitalizar influências e amizades… Quando a notícia se espalha, a clientela faz bicha (fila) à porta.
Mas o min, seja ele frito, ou afogado em caldo, seja com van-tan (precursor-sucessor do ravioli italiano, ou espécie de guioza em São Paulo), ou num “tremendo” caril de tendões de vaca, ou pés de galinha, continua a ser a perdição dos macaenses. Se o chu-cheong fan nos ocupa os anseios de pequeno-almoço (café da manhã), o min é já hábito enraizado ao lanche ou à ceia (ser-se macaense, nestas paragens, é detestar ir de barriga vazia para a cama…).
E o min é vício que não se larga com facilidade, porque é vício colectivo e motivo de confraternização. Atesta-se uma grande amizade e festeja-se uma ocasião medianamente especial ”pagando” um min aos colegas. Quem não peca com min, fá-lo com hó-fân (massa branca de arroz em tiras), ou com mâi-fân (lacassá, ou em São Paulo – macarrão branco de arroz)), todas elas massas, a primeira feita de trigo e as outras de farinha de arroz, mas todas com o mesmo potencial de dependência. E o mâi-fân assume-se, neste contexto, como o último reduto dos comilões empedernidos com menor capacidade digestiva.
Chau-min e hó-fân, lacassá e bebinca de nabo, van-tan e apabicos, são memórias gravadas bem fundo em nós, macaenses, porque situadas ao nível das sensações mais puras, mais directas e duradoiras: gosto, olfacto e tacto. Não farão, afinal, parte do imaginário quotidiano, fruto do natural entendimento de culturas nesta já secular permanência dos portugueses em Macau?
Pensamentos quase profundos… a condimentar um pratinho de massa frita!
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
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Muito obrigada, Rogério Luz! Faz bem à alma, recordar bons momentos da adolescência!
Um grande abraço da Majão Ferreira
Também agradeço pela partilha da postagem. Grande abraço Majão