Cronicas Macaenses

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O Bairro da Felicidade de Macau

BAIRRO DA FELICIDADE

Artigo, fotos e legendas de Manuel V. Basílio (Macau)

O PRIMEIRO GRANDE EMPREENDIMENTO DE EMPRESÁRIOS CHINESES

Ao longo de séculos, desde o estabelecimento dos portugueses em Macau, as novas construções ou reconstruções de prédios, dentro da cidade cristã, careciam de autorização das autoridades chinesas e esta situação constituía um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento do território. Só por volta de 1843 e definitivamente a partir do governo de Ferreira do Amaral (1846 – 1849) é que tais restrições cessaram.

As reformas políticas e administrativas iniciadas por Ferreira do Amaral tiveram continuidade sobretudo a partir do governo de Isidoro Francisco de Guimarães, que tomou posse em 19 de Novembro de 1851, tendo-se mantido no cargo até 22 de Junho de 1863.

Governador Isidoro Francisco de Guimarães, primeiro e único Visconde da Praia Grande de Macau, um título nobiliárquico criado por D. Luís I de Portugal, por Decreto de 10 de Dezembro de 1862

O governo de Isidoro Guimarães ficou marcado por um período de negociações diplomáticas com autoridades chinesas, tendo, após uma série de diligências, alcançado a assinatura de um Tratado de Amizade e Comércio, em Tianjin (天津), no dia 13 de Agosto de 1862, embora nesse Tratado algumas questões essenciais tivessem ficado indefinidas, incluindo a do estatuto de Macau. Isidoro Guimarães, enquanto governador, procurou consolidar as reformas políticas introduzidas por Ferreira do Amaral e, ao mesmo tempo, melhorar a situação económica de Macau, que fora afectada com a extinção da “Hopu”, a poderosa alfândega chinesa, e que motivou a saída dos principais “hong” (ou “hãos”, em português), isto é, estabelecimentos de comércio por grosso, geridos por negociantes chineses. Apesar disso, conseguiu melhorar as finanças públicas a partir de 1857, com o aumento de impostos sobre os exclusivos de “fantan” e lotaria chinesa e, ainda, com o chamado tráfego dos cules, iniciado em 1851, o qual atingiu o seu auge em 1867. Esta nova actividade teve um grande impacto na economia local e contribuiu para uma era de prosperidade, em virtude de rendimentos provenientes da exportação de emigrantes ou colonos chineses para Cuba e outras cidades da América do Sul. Devido a esse comércio, a moeda de prata, conhecida por pataca mexicana, passou a ter boa circulação em Macau, visto que a prata era então bem aceite em troca por bens e serviços. A pataca veio a ser, mais tarde, a designação adoptada para a moeda local, emitida pelo Banco Nacional Ultramarino.

Em termos urbanísticos, ordenou o melhoramento de diversas vias públicas e a construção de estradas, tendo também mandado executar obras de aterro, nomeadamente na zona do Matapau, onde se entulhou uma parte do rio, após o incêndio que ocorreu no Bazar, em 4 de Janeiro de 1856, o qual destruiu, segundo consta, cerca de mil e quinhentas casas, incluindo mais de 600 lojas.

Os governadores que se seguiram também introduziram diversos melhoramentos, quer na reconstrução e alargamento de vias públicas, quer no embelezamento da cidade e, além disso, continuaram a autorizar a execução de novos aterros, para acomodar a crescente população chinesa. Devido ao assoreamento, os primeiros aterros significativos foram realizados nas zonas da Praia Pequena, seguindo aquela linha curva da costa, em direcção a oeste.

Entretanto, o Bairro Chinês não parava de crescer nas imediações da Rua Grande do Bazar, que era a via principal onde se desenvolvia toda a actividade comercial. Havia, portanto, uma urgente necessidade de criar novos espaços, com vista a melhorar as condições de habitação e comércio.

Tal necessidade já era sentida aquando do governo de Coelho do Amaral, visto que uma das políticas então propostas era “conceder aos chinas o adquirir propriedades… ; aumentar os rendimentos públicos pelos foros que pagam os terrenos concedidos e as novas edificações; alargar a cidade, levantando novos bairros, de melhor aparências e cheias de vida; … e, interessar os chinas nas obras públicas …”.

Assim, a partir de meados dos anos sessenta do século XIX, em virtude da necessidade de alargamento de espaço nas proximidades do Bazar, começaram a surgir iniciativas privadas no fomento imobiliário, por parte de alguns abastados negociantes chineses, que investiram naquele sector de actividade, designadamente Wong Lôk (王 祿) e seu filho Wong Tâi (王 棣).

QUEM ERA WONG LÔK?

Segundo publicações em língua chinesa, os antepassados de Wong Lôk (王 祿 ou 王六) eram naturais de Fôk Kin (Fujian), os quais migraram para Macau no reinado de Kangxi (康熙 , em cantonense, lê-se Hóng Hei), tendo-se aqui fixado e desenvolvido as suas actividades, de geração em geração.

Wong Lôk, natural de Jinjiang (晉江), Fujian, teria nascido em princípios do século XIX. Desde cedo mostrou ter grande visão para negócios, dedicando-se a várias actividades, incluindo, como era habitual naquela época, a do jogo. Foi ele um dos primeiros a explorar a modalidade da lotaria Vaeseng (闈姓 , em cantonense, lê-se Wâi Sêng), tendo-se também dedicado a obras de construção civil, tornando-se mais tarde o maior proprietário de imóveis em Macau.

Foi um dos negociantes mais ricos da sua época, tendo ele, em 1871, juntamente com Sam Wong (沈旺), Chou Iao (曹有) e Tak Fong (德豐), requerido ao governo português o registo do Hospital Kiang Wu, sendo, portanto, um dos fundadores deste hospital chinês. Foi também um grande benemérito, tendo doado muito dinheiro para fins de beneficência, bem como para restauro de vários templos chineses e, ainda, para a construção do Templo de Hong Kung (康公廟 , Hóng Kung Miu), situado no Largo do Pagode do Bazar.

Consta que, em princípios dos anos 60 do século XIX, Wong Lôk e alguns amigos seus formaram uma empresa de construção denominada Siu Ch’eong T’óng (紹昌堂置業公司), tendo adquirido uma antiga propriedade na zona do Matapau [1], pertencente a António Vicente Pereira [2] , para servir de sede. Com vista a angariar fundos necessários ao desenvolvimento de novos projectos, convidou alguns dos mais destacados negociantes chineses para participarem no capital da empresa. Com as entradas em dinheiro, a empresa comprou diversos prédios velhos no bairro do Matapau para reaproveitamento. Consta também que a empresa conseguiu obter uma concessão do governo português para a realização de aterros, cobrindo uma zona alagada, que existia nas imediações do Matapau, incluindo o local por onde circulavam barcas de lenha [3]. Iniciadas as obras, a empresa conseguiu, em curto espaço de tempo, criar uma vasta área de aterro e preparou um terreno para construções.

Altar de rua, localizado no fim da Rua do Matapau. Em cima, há 3 grandes caracteres chineses ( 宏隆坊 ), escritos horizontalmente, que significam Bairro de Wang Lông e, do lado direito, 4 caracteres (同治九年), escritos verticalmente, que significam 9º ano do Imperador Tongzhi (同治帝), correspondente ao ano de 1870. Foto MV Basílio.

O PRIMEIRO GRANDE EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO

Assim que estavam criadas as necessárias condições para o projecto de desenvolvimento urbanístico, a empresa liderada por Wong Lôk deu início ao aproveitamento de uma zona de aterro junto do antigo bairro de “Fôk Lông” (福隆坊) [4], construindo a partir dali um novo bairro, com prédios contíguos, ao estilo chinês, dispostos paralelamente ao longo de uma nova via, a que deram o nome de “Fôk Lông Sân Kái” (福隆新街), significando “Fôk Lông” 福隆, felicidade abundante, e “Sân Kái” 新街, rua nova, ou seja, “Rua Nova da Felicidade Abundante”, embora o topónimo adoptado, em português, seja simplesmente Rua da Felicidade. Deste modo, ao contrário do que muitos julgam ou dizem, o topónimo Felicidade não está originalmente associado a bordéis ou meretrizes, mas sim ao nome do antigo bairro de “Fôk Lông”.

Aspecto de um dos prédios localizados na Rua da Felicidade. Originalmente, as paredes eram revestidas de tijolo cinzento, sem pintura, e as portas e janelas, pintadas na cor verde, uma pintura que nada tinha a ver com o chamado “bairro vermelho”. A pintura na cor vermelha foi feita em 1996, durante a administração portuguesa, quando foram realizadas as obras externas de restauro. Foto MV Basílio

Realizou-se, por conseguinte, o primeiro grande empreendimento imobiliário em Macau e, conforme os padrões da época, foram construídos prédios de dois pisos, para fins comerciais e habitacionais, conhecidos por “lojas-casa”. Seguidamente, a partir da Rua da Felicidade (ou seja, a “Rua Nova de Fôk Lông”), foram surgindo outras construções nas ramificações, criando assim o Beco das Galinhas, o Pátio do Ídolo, o Beco da Felicidade e o Pátio da Felicidade.

Rua da Felicidade, vista a partir da Rua da Alfândega. Do lado direito, há um portal alpendrado, com acesso ao Pátio do Ídolo, e do lado esquerdo, outro portal alpendrado, com acesso ao Beco das Galinhas. Foto MV Basílio

No entanto, os comerciantes chineses, há muitos anos estabelecidos no Bazar, não se sentiram atraídos por aquela nova zona, em virtude de fraca circulação de pessoas e falta de atractivos, sendo estas as condições que consideravam essenciais para o desenvolvimento dos seus negócios, preferindo, deste modo, manter a habitual forma de vida no Bazar.

Portal alpendrado do Beco das Galinhas, uma das vias transversais da Rua da Felicidade. O termo galinha é ainda usado, em chinês, para designar prostituta, pois consta que outrora havia ali vários bordéis. Foto MV Basílio

Devido às circunstâncias da época, que não permitiram alcançar o expectável resultado para aquele grande empreendimento, os sócios de Wong Lôk, não prevendo a curto prazo o desejado retorno dos seus investimentos, resolveram ceder as participações que detinham no capital da empresa, que, segundo consta, estava dividido em dez partes. Wong Lôk e seu filho Wong Tâi acabaram por adquirir todas as participações no capital da empresa e, em seguida, criaram uma associação denominada “Cháp Seng T’óng” (集成堂), que passou a ser proprietária de todo o empreendimento.

UM TEATRO CHINÊS CONSTRUÍDO DE RAÍZ

O teatro chinês, também conhecido por auto-china ou ópera chinesa (戲曲 , em cantonense, lê-se “hei k’ôk”) é um teatro musical, que se formou ao longo de muitos séculos na China, no qual incorporam elementos como a literatura, a música, o canto, a dança, as artes marciais, o malabarismo, etc., sendo muito apreciado pela maioria de chineses, visto que naqueles tempos era o principal entretenimento. Embora haja diferentes variantes de ópera chinesa, de acordo com a região ou etnia, a ópera de Cantão era a mais apreciada em Macau, por ser desta região e usar o dialecto cantonense. Outrora, montavam-se, de tempos a tempos, palcos de bambu em espaços abertos para representações de peças de ópera chinesa, semelhantes aos que hoje em dia se montam junto de templos chineses, quando celebram as festividades dedicadas às respectivas divindades.

Conhecedor dos hábitos e preferências da população chinesa, Wong Lôk tomou iniciativas para dinamizar o novo Bairro de “Fôk Lông” e, por isso, projectou a construção de um teatro chinês, tendo, segundo consta, obtido uma licença do governador António Sérgio de Sousa para extender o aterro a partir do local conhecido por “Sâm Hóng Châi” (深巷仔), situado no fim do Beco do Gamboa [5]. Foi nesse novo aterro que se construiu de raíz um edifício para teatro chinês, a que foi dado o nome de CHENG PENG (清平 , que literalmente significa “paz e tranquilidade”), com entrada principal por uma nova via que ali se abriu, denominada Travessa do Auto Novo [6].

Contrariamente ao que muita gente supõe, o Teatro Cheng Peng não foi o primeiro teatro chinês que se construiu de raíz em Macau. Das pesquisas efectuadas, foi encontrada uma notícia, datada de 1867, reportando que “um novo teatro chinês, em maiores proporções do que o actual, e construído de um modo conveniente e apropriado ao seu fim, se vai brevemente levantar no Tarrafeiro, havendo já sido concedida a licença e aprovado o plano para a sua construção”. Passado mais de um ano, em Dezembro 1868, foi desta vez noticiado que “o novo teatro, erigido ao Tarrafeiro, deu na sexta-feira à noite a sua primeira representação. O teatro está bem arranjado e é muito espaçoso” [7].

Placa toponímica da Travessa do Auto Novo, cuja via está localizada junto da entrada principal do Teatro Cheng Peng. Esta via tem 3 designações em chinês: Cheng Peng Hong (清平巷 , literalmente, Travessa de Cheng Peng); Cheng Peng San Kái (清平新街 , ou seja, Rua Nova de Cheng Peng); e, Cheng Peng Chêk Kái (清平直街, isto é, Rua Direita de Cheng Peng). Foto MV Basílio

Consta também que o governador Sérgio de Sousa autorizou o prolongamento de um outro aterro até próximo do local conhecido por Caldeira, para nele se criar um novo bazar ou mercado. Não há notícias de que este bazar tivesse substituído ou superado o antigo bazar, pois nem vestígios restam, a não ser uma via, designada Travessa do Bazar Novo, que começa na Travessa da Caldeira e termina à entrada do Pátio da Felicidade. De igual modo, também se desconhece o exacto local do matadouro que ali se construiu, restando apenas na toponímia a Travessa do Matadouro.

Placa toponímica da Travessa do Matadouro, cuja designação em chinês é “Cheng Peng Kái” (清平街, isto é, Rua de Cheng Peng). Foto MV Basílio

EM QUE ANO FOI CONSTRUÍDO O TEATRO CHENG PENG?

Das pesquisas efectuadas, nenhuma notícia ou anúncio foi encontrado quanto à data da conclusão e abertura do Teatro Cheng Peng. Há publicações em chinês que referem ter sido inaugurado em 1875, no dia em que Wong Lôk completou os seus 70 anos de idade, sem indicar, no entanto, a fonte deste facto [8].

Por outro lado, as publicações existentes em português dão indicações de que o teatro teria ficado concluído antes da visita que o Grão Duque Alexis da Rússia fez a Macau, visto que Sua Alteza Imperial esteve no dia 29 de Setembro de 1872 à tarde no Palácio do Governo, onde recebeu cumprimentos de funcionários públicos, diferentes corporações de oficiais militares, corpo consular e mais pessoas e, à noite, visitou um teatro (“Sing Ping theater” , conforme noticiado no jornal de Hong Kong Advertiser, de 1 de Outubro [9]), onde assistiu a um espectáculo de auto-china.

Entrada principal do Teatro Cheng Peng, em meados do século passado. No lado direito, está a loja de Chá Medicinal Ün Iec (玄益涼茶 ), que em Janeiro de 2020 ainda se encontrava em atividade.

Há ainda uma Portaria, datada de 17 de Janeiro de 1873, em que o governador Visconde de S. Januário aprovou um projecto de obra referente à “Canalização geral das ruas próximas ao novo bazar e teatro china, junto à doca ultimamente aterrada, servindo de base o orçamento de $864,10”… o que sustenta a evidência de que já havia o novo bazar e o teatro china no ano anterior.

Assim, sem outra evidência em contrário, pode-se dizer que tanto o bazar novo como o teatro china deveriam existir antes da data da dita Portaria que autorizou a execução da referida obra e, por conseguinte, o Teatro Cheng Peng poderia estar concluído em 1872.

Foi criado, na zona dos aterros, um Bazar Novo perto do Teatro Cheng Peng, a fim de dinamizar o novo Bairro da Felicidade. Presume-se que essa iniciativa não teve grande sucesso, pois o terreno destinado para o efeito acabou por ser aproveitado para a construção de prédios. Foto MV Basílio

QUANDO VEIO À LUZ UMA SURPREENDENTE DISPOSIÇÃO LEGAL

Apesar de todos os esforços desenvolvidos por Wong Lôk e seu filho Wong Tâi para rentabilizar o investimento feito no Bairro da Felicidade, os comerciantes continuavam a não ter interesse em mudar-se para aquela nova localidade. A situação económica de então também não favorecia, tendo-se até agravado pela passagem de um tufão, a 2 de Setembro de 1871, provocando muitos estragos e elevados prejuízos.

Quando tudo parecia que o primeiro grande investimento realizado em Macau por Wong Lôk ter fracassado, inesperadamente, surgiu o momento de viragem e foi quando veio à luz a Portaria nº 36, de 4 de Junho de 1872, do Governador Visconde de S. Januário, que aprovou o projecto apresentado pela Junta de Saúde de Macau relativo ao Regulamento para as meretrizes e casas toleradas de Macau, elaborado pela dita Junta, levando em consideração que:

A prostituição, condenável sob todos os pontos de vista em que ela se considere, é desde remotas eras um mal tão radicado, que nem a moral nem a religião a puderam ainda evitar.

A severa proibição desta prática, que tão fatal influência exerce na saúde pública, seria o único meio de a suprimir, como era mais conveniente, se a experiência não tivesse mostrado que esta medida origina maiores calamidades, por se desenvolver então em larga escala a prostituição clandestina, que é mais perigosa por se disfarçar em várias formas e subtrair-se à vigilância das autoridades.

Sendo portanto difícil, se não impossível, extinguir a prostituição, é da mais alta importância sujeitá-la a certos preceitos, como se tem feito em todos os países, regulando-a de modo que se evitem quanto possível os seus incalculáveis males. Com este fim, e em cumprimento do que foi determinado, tem a Junta de Saúde Pública a honra de apresentar à superior apreciação de V. Exa. o adjunto projecto de regulamento que se refere à prostituição em Macau.

A legalização das meretrizes em Macau teria sido inspirada no Regulamento Policial das Meretrizes e Casas Toleradas da Cidade de Lisboa, de 1865, que despenalizou a prostituição.

De igual modo, o Regulamento para as meretrizes e casas toleradas de Macau, aprovado pela Portaria nº 36, de 4 de Junho de 1872, definiu o conceito de meretrizes, as obrigações das directoras ou donas de casa e estabelece, também, as respectivas penalidades. O Regulamento determinava, designadamente no CAPITULO I, Das meretrizes, o seguinte:

Artigo 1º. Todas as meretrizes – mulheres que se prostituem por dinheiro – são obrigadas à matricula na administração do concelho.

Art. 2º. As meretrizes serão consideradas em duas classes, segundo vivem em comum sob a direcção de uma mulher que se chama dona de casa, ou são livres e subsistem sobre si.

Art. 3º. No livro da matrícula se declarará a classe de cada uma delas, o nome, idade, naturalidade, estado, morada, sinais característicos, por quanto tempo exerce a prostituição e se já teve afecção venérea.

§ 1º. As meretrizes que vivem em comum serão acompanhadas no acto da matrícula pela dona da casa a que pertencem ou por pessoa que a represente.

§ 2º. A matrícula será gratuita.

Art. 4º. Haverá na repartição de saúde um livro exactamente escriturado como o da administração do concelho, sendo-lhe comunicadas por esta repartição todas as alterações que houver no registo das meretrizes.

Art. 5º. Não será admitida à matrícula a menor de quinze anos, ou outra mulher que for reclamada pelo seu marido ou parentes.

Art. 6º. As meretrizes residirão nos bairros que forem indicados pela polícia, e jamais junto aos templos, tribunais, casas de educação e outros estabelecimentos públicos.

Art. 7º. Todas as meretrizes ficam sujeitas ao exame médico nos dias, horas e local que lhes forem determinados, podendo ele ser feito no próprio domicílio, nos hospitais, ou em qualquer casa para esse fim estabelecida.

§ 1º. Cada meretriz terá um livrete, que lhe será fornecido no acto da matrícula, e em que o facultativo encarregado das inspecções deverá escrever a data e o resultado do exame.

§ 2º. Instruções particulares regularão o tempo, modo e lugar destas inspecções, que serão gratuitas. [10]

AO LONGO DO TEMPO, VÁRIAS ACTUALIZAÇÕES FORAM FEITAS AO REGULAMENTO

Não se pretende aqui narrar sobre a prostituição que existiu em Macau, durante muitas décadas, no Bairro da Felicidade, visto que é um tema demasiado vasto. O que se pretende é apenas fazer aqui uma breve abordagem sobre este assunto, nomeadamente às regulamentações que vigoraram no passado e que permitiram o exercício livre e legal de uma actividade popularmente designada “profissão mais antiga do mundo”, bem como o impacto que teve no desenvolvimento de uma nova zona que se criou em Macau, na segunda metade do século XIX.

Não restam dúvidas de que a legalização das meretrizes e casas toleradas a partir do ano de 1872 veio proporcionar outro dinamismo a uma nova e quase agonizante zona da cidade, porquanto, num breve espaço de tempo, começaram a instalar-se ali as principais actividades comerciais da época, incluindo, como não poderia deixar de ser, hospedarias, casas de jogo, fumatórios de ópio, casas de pasto e, sobretudo, bordéis, então designadas casas toleradas.

Embora o Regulamento acima referido tivesse sido aprovado em 4 de Junho de 1872, passado pouco mais de meio ano, foram-lhe introduzidas várias alterações, em Janeiro do ano seguinte. Anos mais tarde, o Regulamento que então vigorava foi também objecto de revisão e alteração, designadamente no ano de 1887, em que foram introduzidas novas disposições relativas ao registo das meretrizes e donas de casas, bem como ao registo das casas toleradas já estabelecidas e das que vierem a ser estabelecidas, nomeadamente quanto à localização [11]; ao reforço das inspecções sanitárias e ao tratamento das meretrizes no hospital civil da Misericórdia [12], em resultado da inspecção feita pelo competente facultativo; e, ainda, disposições gerais, incluindo transgressões, multas e taxas.

Nesse novo regulamento, tal como na Portaria nº 4, de 1879, manteve-se a classificação das casas toleradas para efeitos da taxa policial em 3 classes, tendo apenas sido actualizadas as respectivas taxas anuais: 1ª classe, $18; 2ª classe, $12; e, 3ª classe, $8 patacas, acrescidas da verba de selo de 2%.

Em virtude dessa classificação, consta que os bordéis de 1ª classe ficavam localizados na Rua da Felicidade, Beco da Felicidade e Travessa da Felicidade; os de 2ª classe, na Travessa das Venturas e na Travessa da Caldeira; e os de 3ª classe, no Pátio da Felicidade e na Rua da Caldeira.

Placa toponímica da Travessa da Felicidade, cuja via era outrora mais conhecida, em chinês, por “Yi On Kai” (宜安街), em virtude do Clube “Yi On”, fundado por Lu Cao. Foto MV Basílio

Das referidas vias, a que mais se notabilizou, sobretudo a partir de princípios dos anos oitenta do século XIX, teria sido a Travessa da Felicidade (福隆新巷 , “Fôk Lông Sân Hóng”, literalmente Travessa Nova da Felicidade Abundante), quando o magnata Lu Cao, ou Lou Kâu, (盧九) ali abriu um clube, inspirado em moldes ocidentais, denominado “Yi On”, para diversão de negociantes ricos, tendo assim atraído para aquela via meretrizes de alta classe. Devido à existência daquele clube, a Travessa da Felicidade ficou também conhecida por “Yi On Kai” (宜安街 , sendo “Yi On”, o nome do clube, e “Kái”, rua, e esta denominação ainda figura na placa toponímica).

Aspecto da Travessa da Felicidade ca. 1920. Ao fundo, vê-se parcialmente o Teatro Cheng Peng

As meretrizes, de um modo geral, eram “mui tsai” (妹 仔 , “mui châi”), vendidas em tenra idade, quando os pais, forçados pela miséria, não conseguiam sustentar todos os seus filhos, preferindo apenas a prole masculina [13]. As “mui châi” mais belas e talentosas, que cresciam em bordéis, aprendiam a tocar instrumentos musicais, cantar, recitar poesias, jogar xadrês chinês, bem como outras artes, e durante a adolescência eram ensinadas a entreter fregueses, tornando-se depois cortesãs, até quando, como por encanto, uma delas for resgatada por um homem rico e levada para se tornar concubina ou mulher dele, passando deste modo a ter uma outra vida melhor e mais livre.

Os bordéis ou casas toleradas não funcionavam apenas no novo bairro de “Fôk Lông”, porquanto no Regulamento, aprovado em 13 de Abril de 1887, previa também que “as disposições deste regulamento são extensivas às meretrizes que vivem em embarcações, as quais são para tal efeito equiparadas às casas de meretrizes”.

Um barco de flores atracado no Porto Interior de Macau. Pintura de Fausto Sampaio, em 1936.

Isto vem a propósito da existência de “bordéis flutuantes”, mais conhecidos por barcos de flores [14] (em inglês “flower boats” ou “Fá T’éng” 花艇 , em cantonense), frequentados sobretudo pela classe abastada e até por estrangeiros, que desde meados do século XVII, já operavam em Whampoa (黄埔 , em cantonense, Wóng Pou, actualmente um distrito de Cantão), os quais podiam ser alugados por algumas horas, para jantar ou para uma noite inteira, com música e outros entretenimentos. Os barcos de flores de Cantão, no século XIX, ganharam a reputação de serem os barcos mais bonitos do mundo, devido à florida ornamentação e tais barcos operaram também noutras áreas do delta do Rio das Pérolas, incluindo Foshan e Macau. Além desses bordéis de luxo, havia também umas embarcações, designadas por tancás [15], usadas como meio de transporte ou habitação permanente nas zonas ribeirinhas, e as mulheres que lá viviam eram conhecidas por tancareiras. Ora, naqueles tempos, havia também tancareiras que se dedicavam à prostituição, as quais eram sobretudo desejadas por marinheiros.

Uma das tancareiras que George Chinnery pintou, pois era um dos seus temas preferidos

DA LEGALIDADE À INTERDIÇÃO DO EXERCÍCIO DA PROSTITUIÇÃO

Os bordéis espalhados por ruas e travessas do Bairro da Felicidade passaram por períodos prósperos e outros menos prósperos. Consta que um dos períodos florescentes foi a partir de 1932, quando o governo de Hong Kong baniu a prostituição e, por este motivo, as grandes lanternas vermelhas voltaram a iluminar as vias do bairro, para atrair a atenção dos visitantes que por lá passavam, ouvindo a cada passo a maviosa música tocada no “pei pá” ou o som encantador da flauta, como que a estender o convite ao hóspede para entrar no bordel.

Esta situação durou até quando o direito exclusivo de exploração de jogos em Macau foi atribuído, em 1937, à Companhia Tai Heng (泰興公司), liderada por Kou Ho Neng (高可寧) e Fu Tak Iam (傅德蔭 , mais conhecido por Fu Lou Iong 傅老榕), tendo a Companhia mandado remodelar o edifício do Hotel Central [16] para ali instalarem salas de jogos e, também, restaurante de comida europeia e chinesa, bar, salão de dança, salão de beleza e demais confortos de um hotel de primeira classe.

Desde então, meretrizes de alta classe passaram a frequentar o Hotel Central e as mais belas eram escolhidas para serem bailarinas do Salão de Dança, onde todas as noites actuava uma orquestra composta por filipinos, para entretenimento dos seus clientes.

A Rua da Felicidade ressentiu-se da debandada de meretrizes de alta classe para o renovado Hotel Central, onde a excitação fervilhava a todo o momento e onde nada faltava para a satisfação da gente endinheirada. Foi o início do declínio de um bairro, onde reinou “prosperidade abundante” durante várias décadas.

Anos depois, veio o pior. O duro golpe foi a publicação do Decreto nº 39 606, de 9 de Abril de 1954, determinando que “o exercício da prostituição é proibido em todas as províncias ultramarinas portuguesas”.

Foi a partir de então que a Rua da Felicidade deixou de ser “Fá Kái” (花街 , literalmente, a rua das flores [17]). No entanto, já anos antes, com a proibição do comércio de ópio e, consequentemente, o encerramento de todos os fumatórios de ópio a partir de 30 de Junho de 1947 e, mais tarde, casas de fantan ali localizadas, estas e outras medidas foram dando golpes fatais nas actividades daquele bairro, deixando-o cada vez mais moribundo durante décadas.

Um troço da Rua da Felicidade, em finais dos anos 50 do século passado. Do lado esquerdo, vê-se a Hospedaria San Va e, a seguir, a casa de Fantan Sui Ching; do lado direito, o Restaurante Fat Siu Lau; e, mais ao fundo, uma Casa de Pasto, uma Casa de Penhores, uma loja de vinho chinês, um hotel,etc.

Apesar da entrada em vigor do referido Decreto, que determinou a proibição da prostituição, o exercício desta actividade não cessou de imediato. Embora vedada por lei, a prostituição manteve-se teoricamente ilegal em Macau, visto que passou a ser praticada noutros locais a coberto de outras actividades, designadamente em clubes nocturnos e em estabelecimentos de saunas e massagens, bem como em determinados estabelecimentos hoteleiros.

DE TEATRO A CINE-TEATRO

O Teatro Cheng Peng foi um edifício construído de raiz para espectáculos de ópera chinesa, provavelmente influenciado pelo aparecimento do Teatro D. Pedro V, o primeiro teatro de estilo ocidental na China, construído em 1860.

Em 1925, foi equipado para exibir filmes e projectou-se então o célebre filme mudo americano de Lillian Gish “The White Sister”. Nas décadas de 1940 e 1950, passou a ser um dos principais Cine-Teatros de Macau, mas na década de 1960 voltou a ser palco de ópera cantonense. Foi nessa década que estavam em voga os chamados “pop concerts”, tendo ali actuado artistas e conjuntos musicais de Hong Kong. Devido à popularidade de tais “pop concerts”, realizaram-se também dois festivais de música, respectivamente em 1963 e 1964, organizados por Mário Tomás, a fim de elegerem o melhor conjunto “ié-ié” de Macau [18]. Actuou, ainda, naquele teatro o Trio Odemira.

O conjunto “The Grey Coats”, formado por Leonardo Amarante, Diamantino Pereira, António Lopes e Jackie Mohamed. Foto: Cortesia de Leonardo Amarante

O Teatro Cheng Peng foi renovado na década de 1970, voltando a exibir filmes, sobretudo do Grupo B, para adultos. Após mais de 20 anos sem a devida manutenção, foi encerrado em 21 de Agosto de 1992, quando o sistema de ar condicionado se avariou. Desde então edifício ficou fechado e sem uso por muitos anos.

“The Grey Coats” (da esquerda para direita: Leonardo Amarante, António Lopes, Diamantino Pereira e Jackie Mohamed) foi o conjunto que venceu os dois festivais organizados por Mário Tomás, no Teatro Cheng Peng, em 1963 e em 1964. Foto: Cortesia de Leonardo Amarante

DESDE O PERÍODO DE LETARGIA ATÉ REVITALIZAÇÃO

Nos primeiros anos da década 60 do século passado, apesar de algumas iniciativas terem sido tomadas, destinadas a dinamizar o bairro, a situação pouco melhorou, porque deixou de ser uma zona privilegiada e a maioria dos visitantes preferia frequentar a Rua de Cinco de Outubro, onde estavam localizadas as mais conceituadas Casas de Pasto, que praticamente funcionavam dia e noite, bem como a Avenida de Almeida Ribeiro, onde podiam encontrar tudo o que necessitavam. Além disso, os melhores hoteis e hospedarias situavam-se em locais não muito distantes das pontes-cais, onde atracavam os barcos a vapor vindos de Hong Kong.

Deste modo, após a abertura da Avenida de Almeida Ribeiro, a Rua da Felicidade foi perdendo a sua importância, passando a ser uma via secundária. Durante décadas, apenas em vias transversais daquela Rua é que o comércio do tipo familiar se manteve com razoável movimento comercial, nomeadamente a Travessa do Matadouro, em chinês, Cheng Peng Kái (清平街 , ou seja, a “Rua de Cheng Peng”), por ter comunicação entre a Avenida de Almeida Ribeiro e o Teatro Cheng Peng, situado mais adiante, na Travessa do Auto Novo (em chinês, “Cheng Peng Sân Kái”) e, também, a Travessa do Mastro, devido a restaurantes ali existentes.

Em frente, é a Travessa do Mastro, vista a partir da Travessa da Felicidade. A via que intersecta com as referidas travessas é a Rua da Felicidade. O estabelecimento pintado na cor bege é o Restaurante Fat Siu Lau. Foto MV Basílio

Foi assim que permaneceu a Rua da Felicidade, quase dormente, durante algumas décadas da segunda metade do século XX, de forma que, o conjunto de casas ali existente, sem a devida manutenção, foi-se degradando. A fim de transformar aquela via em uma zona de atracção turística, devido ao seu valor histórico-cultural, a administração portuguesa procedeu, em 1996, ao reordenamento da Rua da Felicidade, mandando pintar as portas e janelas das casas de vermelho e as paredes exteriores da cor cinza claro e colocar toldos vermelhos, fazendo renascer a aparência de “bairro vermelho”.  As construções localizadas na Rua da Felicidade e no Beco da Felicidade foram depois integradas na lista do património protegido.

Aquela obra de requalificação veio alterar a fisionomia da Rua da Felicidade e, apesar disso, todo aquele bairro só conseguiu revitalizar anos mais tarde, designadamente a partir de Julho de 2003, quando o governo da República Popular da China autorizou a concessão de vistos individuais a chineses residentes na região vizinha de Zhuhai, para visitarem Macau e Hong Kong, tendo a mesma concessão sido depois estendida para outras cidades do continente.

Actualmente, a Rua da Felicidade e as vias adjacentes são visitadas por turistas, para comprar toda aquela variedade de guloseimas de fabrico próprio, frequentar os restaurantes ou estabelecimentos de comida europeia e chinesa e, também, visitar uma das ruas com características únicas de Macau.

Dos antigos estabelecimentos, restam ainda para a memória o conhecido restaurante “Fat Siu Lau” (佛笑樓餐廳 , ou seja, Restaurante do Buda Sorridente), estabelecido em 1903 por Wong Man Seng (黃民成), e também a antiga Hospedaria San Vá, que já serviu de cenário para várias filmagens.

Rua da Felicidade, vista a partir da junção com a Travessa do Mastro e a Travessa da Felicidade. Vê-se, do lado direito, a Hospedaria San Va e, do lado esquerdo, uma parte do Restaurante Fat Siu Lau. Foto MV Basílio

Na realidade, o património existente no Bairro da Felicidade reveste-se de valor histórico, porquanto marcou uma época de Macau, por ter sido o primeiro grande empreendimento imobiliário levado a cabo por iniciativa de empresários chineses. No entanto, devido às circunstâncias da época, a projectada finalidade fora alterada, tendo muitas das casas sido utilizadas, durante décadas, para a instalação de bordéis e de actividades moralmente censuráveis. Seja como for, o Bairro da Felicidade ainda mantém um conjunto de imóveis de valor histórico-cultural, que serviu de “bairro vermelho”, sendo o único do género que resta em toda a China.

NOTAS:

[1] Matapau era um termo no dialecto macaense para designar tangerina, em chinês, Kât Châi (桔仔). Originalmente, a zona do Matapau era um pequeno bairro chinês, designado “Wâng Lông Fóng” (宏隆坊 , sendo “Wâng Lông, grande prosperidade e, “Fóng”, bairro). Actualmente restam 3 vias (uma rua, uma travessa e um beco) da antiga zona do Matapau, estando a Rua do Matapau, em chinês, Kât Châi Kái ( 桔仔街 ), situada entre a Avenida de Almeida Ribeiro e a Rua da Barca da Lenha. Esta rua termina na Travessa do Aterro Novo.

[2] António Vicente Pereira, filho do Conselheiro Manuel Pereira e de Ana Pereira Viana.

[3] Ainda existe, entre a Rua do Matapau e a Rua da Felicidade, uma via designada Rua da Barca da Lenha, em chinês, Ch’ái Sün Mei Kái ( 柴船尾街 ) onde, outrora, junto à margem, havia cais a que essas embarcações podiam atracar para descarga de lenha e carvão.

[4] Além do antigo bairro “Fôk Lông”, donde nasceu, a partir dos aterros, o novo Bairro da Felicidade, havia ali próximo, nomeadamente o antigo bairro “Wang Lông” (宏隆坊 , “Wang Lông Fóng”), na zona do Matapau, e o antigo bairro “Tâk Lông” (德隆坊 , “Tak Lông Fóng”), que apenas resta um portal e uma curta via designada Pátio do Cotovelo. No lintel do portal deste Pátio, há 3 inscrições: a do centro, estão gravados os caracteres chineses 德隆新街 (Tâk Lông Sân Kái), podendo “Tâk Lông”, literalmente, significar “Virtude Abundante” e, “Sân Kái” quer dizer “Rua Nova”; a inscrição do lado direito é 咸豐己未冬初 (que quer dizer “9º ano do Imperador Xianfeng”, correspondendo, assim, ao ano de 1859); e, do lado esquerdo, 里人建立 (cujos caracteres significam “construído pelas pessoas do interior” da rua).

[5] O Beco do Gamboa também é conhecido, em chinês, por “Sâm Hóng Châi” (深巷仔), que comunica com a Travessa das Virtudes (também designada, em chinês, por 深巷橫街 “Sâm Hóng Wáng Kái”). A Travessa das Virtudes confina com uma das paredes laterais do Teatro Cheng Peng.

[6] A Travessa do Auto Novo (cuja designação “auto novo” quer significar “novo teatro chinês” ou “novo teatro de ópera chinesa”), além do topónimo, em chinês, “Cheng Peng Hóng” (ou seja, “Travessa de Cheng Peng”), é também designada “Cheng Peng San Kái” (“Rua Nova de Cheng Peng”) e “Cheng Peng Chêk Kai” (“Rua Direita de Cheng Peng”).

[7] Pena é que ambas as notícias não citam o exacto local do teatro, nem o nome desse teatro. Apenas se mencionou que foi “erigido ao Tarrafeiro”. Presume-se, portanto, que poderia situar-se na actual Rua do Teatro, uma vez que esta via está muito próxima do Tarrafeiro.

[8] Existe uma publicação, em chinês, em que refere (mas sem mencionar a fonte) que Wong Lôk e o seu filho Wong Tâi aceitaram uma sugestão do governador António Sérgio de Sousa para edificarem um teatro chinês e, deste modo, começaram a construção em Outubro de 1870. O edifício do teatro ficou basicamente concluído dois anos depois. Subsequentemente, foram realizadas obras internas, após as quais o teatro foi oficialmente inaugurado em 1875. Caso assim fosse, pode-se presumir que, depois daquele espectáculo de ópera chinesa realizado, em 29 de Setembro de 1872, com a presença do Grão Duque Alexis da Rússia, o Teatro teria sido danificado por algum violento temporal (visto que vários temporais ocorreram em 1873 e 1874) e teve de ser reparado ou remodelado, voltando a abrir em 1875, a tempo de comemorarem os 70 anos de Wong Lôk, que faleceu no ano seguinte.

[9] Informação extraída de uma postagem feita pelo autor do blogue nenotavaiconta, em 28.09.2016, em que faz referência a “Sing Ping theater”, quer dizer, “Teatro Cheng Peng”.

[10] Transcrição parcial do primeiro Regulamento para as meretrizes e casas toleradas de Macau. A versão integral está publicada no Boletim da Província de Macau e Timor nº 24, de 8 de Junho de 1872.

[11] Nesse Regulamento prevê que: “Fica proibido o estabelecimento de novas casas de meretrizes em lugares onde possam ser nocivos à moral pública ou ao decoro das famílias vizinhas, cumprindo às autoridades policiais providenciar para que esta disposição seja mantida e atender todas as reclamações justas, que lhes forem dirigidas.”

[12] Refere-se ao Hospital de S. Rafael.

[13] O infanticídio feminino era uma prática corrente na China. No entanto, havia pais que, pressionados pela miséria, em vez de matarem as suas filhas, as vendiam.

[14] É possível que os barcos de flores, que sulcavam as águas do rio, para entretenimentos licenciosos, teriam servido de inspiração para o maior poeta simbolista português, Camilo Pessanha, quando compôs o seu poema Ao Longe os Barcos de Flores, porquanto descreve “um som da flauta chora … na escuridão tranquila …, na orgia, ao longe, …”, etc., etc. De notar que a flauta e o “pei pa” eram instrumentos musicais utilizados por meretrizes para entreter os clientes.

[15] Tancá é pequena embarcação de origem chinesa, sem quilha, coberta com um toldo de forma oval, geralmente movida por um só remo, que é usada para pesca ou para transporte de passageiros, podendo ainda servir como habitação. Tancá também se refere a uma minoria étnica que vivia em embarcações nas zonas costeiras do sul da China e essa gente do mar (水上人 , sôi seong yân”, literalmente, pessoa que vive sobre a água) era conhecida por tancareira. As tancareiras eram muito apreciadas pelo pintor inglês George Chinnery, tendo feito vários desenhos sobre elas, nomeadamente a célebre pintura a óleo da tancareira Assor.

[16] O edifício hoteleiro, originalmente denominado Hotel President, foi inaugurado a 22 de Julho de 1928, com apenas 6 andares. Em 1930, quando a Companhia Hou Heng (濠興公司), liderada por Fok Chi Teng (霍芝庭), ganhou a primeiro monopólio para a operação de todas as modalidades de jogos, a Companhia ocupou aquele hotel e alterou a denominação para Grand Hotel Central.

[17] Fá Kái (花街) em chinês significa “Rua das Flores” e “flores” era um termo vulgarmente usado para designar “prostitutas”.

[18] Os dois festivais de música, organizados por Mário Tomás, realizaram-se no Teatro Cheng Peng, respectivamente em 10 de Novembro de 1963 e em 16 de Agosto de 1964, tendo o conjunto “The Grey Coats”, formado por Leonardo Amarante (líder), Diamantino Pereira, António Lopes e Jackie Mahomed, sido o conjunto vencedor dos dois festivais.

Publicações consultadas:

  • Comerciantes chineses de Macau no final da Dinastia Qing (澳門晚清華商), da autoria de Lam Kwong Chi (林廣志).
  • * Boletins da Província de Macau e Timor; Mapas de Macau do século XIX; Cadastros de Vias Públicas e Outros Lugares de Macau; e, também, publicações diversas, nomeadamente o blogue nenotavaiconta.

(Texto, fotos e respectivas legendas de MV Basílio. Salvo indicação em contrário, as fotos antigas foram baixadas da internet, designadamente do grupo Antigas Fotos de Macau).

Um troço da Travessa da Felicidade, vendo-se ao fundo as portas laterais do antigo Teatro Cheng Peng e, na parede, 4 caracteres chineses, de cor vermelha, “Cheng Peng Hei Yün”. Foto MV Basílio

Portal alpendrado do Beco da Felicidade. No lado direito, junto à entrada, há um altar de rua do Bairro da Felicidade. Foto MV Basílio

Altar de rua do Bairro da Felicidade, localizado à entrada do Beco da Felicidade. Foto MV Basílio

O conjunto de prédios do Beco da Felicidade. No lado esquerdo, está uma das casas recuperadas, que actualmente serve para a divulgação de cultura, denominada “Hall de Cultura” (文化公所). Foto MV Basílio

Outro aspecto do Beco da Felicidade, visto do sentido contrário. Foto MV Basílio

Um troço da Rua da Felicidade, visto a partir da Travessa do Aterro Novo. Foto MV Basílio

Em 1996, quando a administração portuguesa mandou pintar de vermelho as portas e janelas dos prédios e, de cinza claro, as paredes, os velhos residentes não gostaram, pois disseram que a cor original das portas e janelas era verde e as paredes eram de tijolo cinzento, sem pintura. Recentemente, há várias casas que foram renovadas e as portas e janelas já se apresentam com a cor original, ou seja, pintadas de verde, assim como as paredes, sem pintura. Foto MV Basílio

Rua da Felicidade, vista a partir da junção da Travessa do Matadouro com a Travessa do Auto Novo. Foto MV Basílio

Rua da Caldeira, que é a continuação da Rua da Felicidade até ao Porto Interior. Foto MV Basílio

Travessa do Auto Novo, em Dezembro de 2019. Ao fundo, do lado esquerdo, era a entrada principal do antigo Teatro Cheng Peng. Foto MV Basílio

Travessa do Auto Novo, nos anos 70 do século passado.

Actuação do conjunto “The Grey Coats”, no 1º Festival de Música, realizado no Teatro Cheng Peng, em 1963. Foto: Cortesia de Leonardo Amarante

O líder de “The Grey Coats”, Leonardo Amarante, a receber o troféu, por ter sido eleito o melhor conjunto. Do lado esquerdo, vê-se Mário Tomás, o organizador do festival. Foto: Cortesia de Leonardo Amarante

A Rua da Felicidade, num postal de princípios do século XX

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

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O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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