Cronicas Macaenses

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Dia de Macau – 24 de Junho de 2022 celebra 400 anos da maior derrota dos holandeses no Oriente, e Manuel V. Basílio nos conta como foi

Hoje, 24 de Junho de 2022, comemora-se 400 anos de “A Maior Derrota dos Holandeses no Oriente” na sua tentativa de tomar Macau dos portugueses.

Até a transição de soberania de Macau, de Portugal para a República Popular da China, em 20 de Dezembro de 1999, a data era comemorada como “DIA DE MACAU” ou “DIA DA CIDADE”. Parcela da Comunidade Macaense mundial ainda comemora a data com a mesma denominação, e outra, como dia de São João Baptista, o Padroeiro da cidade.

Para comemorar a data, publicamos excertos do livro de Manuel V. Basílio – A Maior Derrota dos Holandeses no Oriente – gentilmente cedidos pelo autor a este blogue e que bem contam a sua história em ricos detalhes, fruto de extenuante trabalho de pesquisa em diversas publicações, inclusive na língua inglesa.

O Manuel V. Basílio vem fazendo seus trabalhos de pesquisa sobre a história de Macau, resultando em publicações neste blogue Crónicas Macaenses, no Jornal Tribuna de Macau e em livros escritos na língua portuguesa e traduzidos para a língua chinesa. Parabéns ao autor, e que venham mais obras contando com o apoio de divulgação por qualquer entidade e instituição macaense e portuguesa, como já se verifica com seus trabalhos publicados.

Este blogue, há anos, vem incentivando a comemoração da data como Dia de Macau, mesmo que seja hoje uma data histórica mas que ainda reside no coração dos macaenses, pois, se os holandeses tivessem tomado Macau e expulsado os portugueses, existiria esta gente Macaense, resultante de mistura de raças, principalmente da portuguesa?

EXCERTOS DO LIVRO DE MANUEL V. BASILIO, INTITULADO

“A MAIOR DERROTA DOS HOLANDESES NO ORIENTE”

EDITADO EM FEVEREIRO DE 2022,

PARA COMEMORAR OS 400 ANOS DA BATALHA DE MACAU,

OCORRIDA NO DIA 24 DE JUNHO DE 1622

O livro descreve não só a Batalha de Macau, como também outros temas relacionados com a invasão dos holandeses no ano de 1622, tais como as celebrações que tiveram lugar ao longo dos séculos, as vicissitudes quanto ao cumprimento do “voto” da Cidade, as festas em honra de São João Baptista, o primeiro Padroeiro da Cidade de Macau, incluindo as festas dos santos populares que se realizaram sobretudo no século passado e, como não podia deixar de ser, a iniciativa que foi tomada em meados do século XIX para a edificação do Monumento da Vitória, destinada a comemorar o feito heróico praticado pelos nossos antepassados, naquele memorável dia 24 de Junho, que até à transição da administração portuguesa para a República Popular da China, era designado e celebrado como DIA DA CIDADE

Como consta do preâmbulo, o livro é especialmente dedicado:

À MEMÓRIA DE
todos aqueles portugueses,
moradores, filhos da terra e “moços” que,
QUATROCENTOS ANOS,
valentemente defenderam a Cidade de Macau
contra a invasão dos holandeses,
tendo, naquele memorável dia
24 de Junho de 1622,
infligido aos holandeses
a maior derrota que sofreram no Oriente.

Para recordar a BATALHA DE MACAU, foram extraídas as seguintes partes do referido livro:

AS CAUSAS DA GUERRA

Com o regresso de Vasco da Gama a Lisboa, concluindo com sucesso a expedição que liderou na descoberta do caminho marítimo para a Índia, estabeleceu-se, desde então, uma ligação marítima entre o Ocidente e o Oriente, tendo os portugueses conseguido em 1510, o estabelecimento da Índia Portuguesa, após a conquista de Goa, que se transformou na capital do Império Português do Oriente. A descoberta do caminho marítimo entre Portugal e o subcontinente indiano permitiu criar uma nova rota, conhecida por Rota do Cabo, que passou a ligar directamente as regiões produtoras das especiarias aos mercados europeus, a qual foi explorada pelos portugueses até meados do século XVII, e que muito contribuiu para o desenvolvimento económico de Portugal.

Retrato do rei D. Sebastião, por Cristóvão de Morais (Museu Nacional de Arte Antiga)

No entanto, em 1580, deu-se a União Ibérica, que durou até 1640, período em que o reino português esteve sob o domínio espanhol, por razões relacionadas com a sucessão do trono português, visto que o rei D. Sebastião, que morreu na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, não tinha filhos, nem o seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, coroado novo rei de Portugal, tinha descendentes quando faleceu dois anos depois. Nestas circunstâncias, o rei espanhol Filipe II, alegando parentesco com D. Sebastião, invadiu o reino português e anexou-o à Espanha.

A unificação dos dois reinos, sob a liderança da coroa espanhola não foi benéfica para Portugal, pois tanto os holandeses como os ingleses passaram também a ser inimigos de Portugal.

Naquela época, a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos, também conhecida como República Unida dos Países Baixos ou, abreviadamente, Países Baixos, estava lutando pela sua independência contra os Habsburgos, e Portugal, reinado por Filipe II da Espanha após a União Ibérica, estava sob o domínio dos Habsburgos, que travavam combate contra a revolta holandesa.

Antes da união das Coroas, os mercadores portugueses utilizavam os Países Baixos como base para a venda das suas especiarias. Pretendendo afastar os Países Baixos dos mercados de especiarias de Lisboa, Filipe II mandou embargar todo o comércio com as províncias rebeldes, passando esse comércio a ser dirigido pelos Países Baixos do sul, situados aproximadamente na actual Bélgica, por serem católicos, em oposição aos holandeses protestantes dos Países Baixos do norte.

A fim de não perder o seu monopólio de distribuição com a França, o Sacro Império Romano e o norte da Europa e, ao mesmo tempo, assegurar a sua fonte vital de rendimentos, a República Unida dos Países Baixos procurou por todos os meios recuperar o comércio de especiarias para a sua sobrevivência económica e, sobretudo, a sua fonte mais importante de financiamento da guerra contra a Espanha, visto que as suas actividades de pesca no Mar do Norte e do comércio de cereais no Báltico não seriam suficientes para manter a República.

O embargo a todo o comércio com a República Unida dos Países Baixos, ordenado pelo rei Filipe II, acabou por forçar os holandeses à organização e ao envio dos seus próprios navios às fontes produtoras, a fim de assumirem o controle do comércio de especiarias das Índias.

Entretanto, a tensão política entre a União Ibérica e a Inglaterra e seus aliados holandeses agravou-se com a expedição da Armada Invencível, que o rei Filipe II da Espanha mandou organizar, em 1588, para invadir a Inglaterra, na tentativa de neutralizar a influência inglesa sobre a política dos Países Baixos Espanhóis. Como se sabe, foi uma desastrosa expedição que resultou numa significativa perda do poderio naval espanhol e português.

Anos depois, devido ao estado de guerra que ainda se mantinha com a Inglaterra, uma frota inglesa capturou, em 1592, uma grande nau portuguesa – a Madre de Deus, que vinha carregada com mais de 900 toneladas de mercadorias da Índia e da China, no valor estimado de meio milhão de libras, uma avultosa importância para a época e essa notícia depressa se espalhou, tendo então suscitado na Europa enorme interesse na procura daqueles produtos no Oriente.

Sabe-se que, em 1592, os irmãos Cornelis e Frederik de Houtman foram enviados a Lisboa como representantes comerciais de nove mercadores holandeses. Os irmãos foram, no entanto, presos pelos portugueses por tentarem roubar cartas secretas das rotas de navegação das Índias Orientais. Após a libertação em 1595, eles regressaram a Amesterdão, onde Cornelis foi nomeado comandante de quatro navios, três dos quais fortemente armados, da Compagnie van Verre, criada por aqueles nove mercadores de Amesterdão, para estabelecer comércio com as Índias Orientais. Os irmãos zarparam com a frota em 2 de Abril de 1595 e fizeram a viagem com a ajuda das instruções de navegação escritas pelo explorador holandês Jan Huyghen van Linschoten, que já tinha viajado muito no Oceano Índico ao serviço dos portugueses, tendo até publicado um relatório relativo a navegações dos portugueses no Oriente. Nesse relatório havia orientações sobre como navegar em navios entre Portugal e a Índia e até para o Japão. Embora a viagem dos irmãos Houtman não tivesse tido relevante sucesso comercial, provou-se que também eram capazes de realizar semelhante viagem.

Os holandeses e os ingleses, alimentados por essas informações, deram início a um movimento de expansão comercial, tendo os ingleses fundado a English East India Company em 31 de Dezembro de 1600, e os holandeses, a Dutch East India Company (VOC), em 20 de Março de 1602.

OS PRIMEIROS ATAQUES DOS HOLANDESES NO EXTREMO ORIENTE

Em 1601, os holandeses apareceram, pela primeira vez, ao largo de Macau, numa frota comandada pelo almirante Jacob Cornelius van Neck. Para fazerem o reconhecimento de Macau, enviaram um barco com vários membros da tripulação, mas os portugueses, quando os viram, atacaram-nos e, segundo consta, vinte deles foram capturados, tendo dezoito sido enforcados e dois enviados para Goa. Este incidente, porém, não impediu o regresso dos holandeses em 1603 e, dessa vez, dois dos seus navios abriram fogo sobre Macau e saquearam e incendiaram uma nau.

No ano seguinte, um enviado holandês tentou estabelecer comércio com a China, mas por causa da influência portuguesa junto das autoridades chinesas, essa tentativa foi abortada, de forma que o almirante Wybrand van Warwijck partiu, naquele ano, com a sua frota, a fim de atacar Macau. No entanto, não conseguiu concretizar o seu intento, devido à ocorrência de um tufão, que impediu a continuação da sua viagem, tendo a sua frota sido atirada para as Ilhas Pescadores e dali fugiu, quando as autoridades chinesas enviaram cinquenta juncos para cercarem a frota.

Os holandeses não constituíam a única ameaça, pois havia aventureiros britânicos que também queriam apoderar-se de Macau. Os holandeses dispunham então de uma força muito superior e, por conseguinte, começaram a planear a melhor forma para assumirem o controlo de Macau, dado que tinham conhecimento de que Macau sempre foi um local aberto e sem guarnição militar apropriada. Nessas circunstâncias, consideraram que a cidade poderia ser facilmente tomada por uma força de cerca de mil homens.

As movimentações da frota holandesa ao largo da costa de Macau em 1601 foram um preocupante sinal de alerta, tanto para a população, como para os jesuítas, que foram os primeiros religiosos a virem para Macau pouco depois do estabelecimento dos portugueses e aqui fundaram o Colégio de S. Paulo, com a missão de formar missionários para a evangelização no Oriente, sobretudo na China e no Japão.

Efectivamente, em princípios do século XVII, barcos holandeses já navegavam em mares da China, havendo notícias de holandeses terem tomado de assalto naus de portugueses carregadas de mercadorias que partiram de Macau para Malaca e para o Japão.

Placa afixada no troço da muralha de chunambo, dentro do actual Colégio Mateus Ricci, na Travessa de S. Paulo, nº 1-A, com a seguinte descrição: muralha que circundava a propriedade dos jesuítas – 1606 – Foto MV Basílio, em 2021

Por conseguinte, as primeiras ameaças dos holandeses para tomar a Cidade de Macau foram sobretudo em 1603 e 1604. Foi então que os jesuítas sentiram a necessidade de proteger as suas propriedades à volta do Colégio, bem como a nova igreja de S. Paulo, que tinha sido inaugurada na noite de 24 de Dezembro de 1603.

Troço da muralha que circundava a propriedade dos jesuítas, visto num outro ângulo. Foto MV Basílio, em 2021

Construiu-se, então, uma cerca muralhada para proteger aquelas propriedades dos jesuítas e também para albergar os desprotegidos habitantes, nomeadamente mulheres e seus filhos, em caso de um ataque à cidade, visto não haver fortificações. Aquela cerca, construída por jesuítas, ficou concluída em 1606 e o material utilizado era uma amálgama de areia, argila, cal de ostra, pedra e terra, etc., designada por chunambo, e cujo processo de construção consistia em camadas horizontais daquela amálgama, muito apertadas umas sobre as outras.

Em 1607, houve uma nova tentativa dos holandeses, liderada pelo almirante Cornelis Matelieff de Jonge, para tomar a Cidade, mas sem sucesso, tendo sido atacados por seis navios portugueses, que os puseram em fuga.

A TRÉGUA QUE BENEFICIOU MACAU

Seguidamente, houve um período de acalmia, em virtude da chamada Trégua dos Doze Anos, firmada em 1609, entre a Espanha e as Províncias Unidas (lideradas pela Holanda e Zelândia). Macau beneficiou daquela trégua, mas não ficou totalmente livre de um futuro ataque dos holandeses. Assim, terminada a trégua em 1621, as Províncias Unidas retomaram a guerra contra a Espanha, e não só, pois, logo no ano seguinte, os holandeses voltaram com uma poderosa esquadra para invadir a Cidade de Macau.

Sendo os holandeses protestantes, seguidores do Calvinismo, os jesuítas previram desde cedo o perigo de um ataque desses anticatólicos, e caso a Cidade de Macau fosse tomada por eles, os portugueses perderiam todo o comércio e os religiosos ficariam privados da sua missão de evangelização no Oriente.

Por isso, os jesuítas estavam determinados em edificar algumas fortificações, designadamente um forte, no cimo de uma colina, para a defesa da Cidade, embora com objecções por parte das autoridades chinesas, que duvidavam das verdadeiras intenções de uma obra de grande envergadura. Mesmo assim, a construção da fortaleza na colina de S. Paulo do Monte teria sido iniciada por volta de 1616, sob a direcção dos jesuítas, cuja obra foi tolerada pelas autoridades chinesas, provavelmente por serem membros da Companhia de Jesus, com alguma influência na corte de Pequim, devido à reputação do jesuíta Matteo Ricci ou, então, mediante condições que foram estipuladas, depois de três dos principais moradores de Macau terem ido a Cantão em 1612, com o propósito de exporem a necessidade de fortificar a Cidade.

Na sequência daquela visita a Cantão, construíram, a partir do ano de 1613, três baluartes ou fortins em pontos estratégicos: um, em Santiago da Barra; outro, em S. Francisco; e, um terceiro, em Bom Parto, para a defesa costeira, em caso de um ataque do inimigo.

A COBIÇA DOS HOLANDESES POR MACAU

A Companhia Holandesa das Índias Orientais, em poucos anos após a sua fundação, tornou-se muito poderosa, devido à armada que foi criando, tendo conseguido, através de assaltos e conquistas às possessões portuguesas, instalar-se em vários pontos do Índico, com o objectivo de monopolizar os interesses e as rotas que estavam nas mãos dos portugueses.

Naquela época da dinastia Ming (明朝), que governou a China até 1644, o comércio directo com o Japão era proibido, devido aos temíveis wokou (倭寇 , em cantonense, lê-se wó k’âu e, em japonês, wakō) que eram piratas ou contrabandistas japoneses, que pilhavam e traficavam na costa marítima chinesa. Esta situação beneficiou os portugueses, que utilizaram o porto de Macau para actuarem como intermediários do comércio sino-japonês, ficando com a exploração de uma importante e muito lucrativa rota comercial entre Macau e Nagasáqui, no Japão.

Para poderem comercializar com os japoneses, os holandeses conseguiram criar, em 1609, um posto comercial em Hirado como base de operações da Companhia Holandesa das Índias Orientais no Japão. Apesar disso, em breve verificaram que tal posto era de pouca rentabilidade, comparado com o de Nagasáqui, visto que os portugueses facilmente obtinham a seda crua e outros produtos chineses do mercado de Cantão, enquanto que os holandeses e ingleses dependiam da captura dos carregamentos a bordo de embarcações chinesas e portuguesas.

Biombo representando a nau do trato (ou nau preta) dos nanban jin (os bárbaros do sul, como eram designados os portugueses) na viagem ao porto de Nagasáqui, Japão.

Deste modo, explorando os portugueses um negócio altamente rentável, esta situação despertou a cobiça dos holandeses e, para retirar tal rota comercial dos portugueses, teriam de se instalar na China e só assim é que poderiam ter uma base comercial que lhes permitisse o fácil acesso aos mercados chineses para obterem a seda e outros produtos. Por conseguinte, o grande alvo dos holandeses era a conquista da Cidade de Macau.

OS HOLANDESES TENTARAM NOVAMENTE TOMAR A CIDADE DE MACAU

O receio dos moradores de Macau de que os holandeses tentariam, mais cedo ou mais tarde, apoderar-se da Cidade nunca foi posto de parte e tal receio veio a confirmar-se quando, no dia 22 de Junho de 1622, apareceu ao largo de Macau, uma poderosa frota holandesa de 14 naus, a que se juntaram 2 embarcações inglesas. A frota inicial, composta por 8 naus, tinha partido, em 10 de Abril de 1622, de Batávia (actual Jacarta), onde a Companhia Holandesa das Índias Orientais tinha a sua sede, com o fim de efectuar o planeado ataque, sob o comando do almirante Cornelius Reijersen.

Faziam parte da frota inicial as seguintes 8 naus:
Zierickzee, a nau capitânia do almirante Cornelius Reijersen;
Groeningen, a cargo do capitão Willem Bontekoe;
Oudt Delft, a cargo do capitão Willem Andriessen;
Enchuizen, a cargo do capitão D. Pietersen;
Gallias, a cargo do capitão D. Floris;
Engelsche Beer, a cargo do capitão L. Nanning;
St. Nicholas, a cargo do capitão J. Constant;
Paliacatta, a cargo do capitão J. Jacobsen.

Entretanto, o almirante Reijersen tinha ordens para que qualquer embarcação holandesa encontrada durante a viagem fosse incorporada na sua frota, destinada à invasão. Deste modo, as naus Haan, Tiger, Victoria, Santa Cruz, Trouw e Hoop juntaram-se à frota inicial, ficando, assim, a frota de invasão holandesa composta por 14 naus, com uma força de 1.300 homens, incluindo a força de desembarque de 800.

Conforme instruções do almirante Reijersen, as duas embarcações inglesas – Palsgrave e Bull, que acompanharam a frota holandesa, apenas podiam tomar parte em operações marítimas, estando as suas tripulações impedidas de participar no desembarque ou receber qualquer parte dos espólios de guerra. Por esse motivo, os capitães ingleses recusaram-se a comprometer as suas embarcações no ataque.

PREPARATIVOS DOS HOLANDESES PARA A INVASÃO E TOMADA DA CIDADE DE MACAU

Consta que, na noite de 22 de Junho, o almirante Reijersen enviou três homens, acompanhados de um guia chinês, para fazerem o reconhecimento das imediações da Cidade de Macau e para certificarem se os chineses que residiam no bairro chinês se mantinham neutros, em caso de um ataque dos holandeses.

O grupo de reconhecimento regressou após descobrir que praticamente todos chineses tinham fugido, assim que pressentiram que a Cidade iria ser invadida. Nestas circunstâncias, na manhã seguinte, o almirante Reijersen embarcou numa lancha com alguns oficiais para fazer o reconhecimento do local mais apropriado para o desembarque das suas tropas.

No dia 23 de Junho, três das naus – Groeningen, Gallias e Engelsche Beer, surgiram ao largo do baluarte de São Francisco e dispararam fortemente contra aquela fortificação durante toda a tarde. Os artilheiros portugueses ripostaram igualmente com intensidade e esta demonstração de força, com tiros de artilharia de ambos os lados, durou até quando aquelas três naus se retiraram ao pôr-do-sol.

Lopo Sarmento de Carvalho, o Capitão-mor da Viagem do Japão, encontrava-se então em Macau, a aguardar a época em que seguiria viagem para o Japão. Estando ele, como Capitão-mor, encarregado da defesa durante a sua permanência na Cidade, por não existir naquela altura o cargo de Governador, ao ver as movimentações da frota inimiga, tinha plena consciência de que os holandeses desembarcariam no dia seguinte, pelo que passou a noite a inspeccionar as fortificações e a reunir os seus homens para se prepararem para a luta até ao fim.

No dia 24 de Junho, ao romper do dia, com o propósito de desviar a atenção do local escolhido para o desembarque, as naus holandesas Groeningen e Gallias começaram a bombardear o baluarte de São Francisco. A guarnição do baluarte rapidamente ripostou e, após sucessivas trocas de tiros, os canhões portugueses foram mais eficazes e certeiros, tendo causado graves danos à nau Gallias, que foi atingida com mais de 20 tiros e ficou praticamente inutilizada para o combate.

Gravura de Joan Nieuhof, de 1665, reproduzindo, de forma fantasiada, o ataque dos holandeses à Cidade de Macau.

O ATAQUE DOS INVASORES

O local escolhido para desembarque de 800 soldados holandeses foi a praia de Cacilhas, o qual se deu pela manhã do dia 24 de Junho, cerca de duas horas após o nascer do sol, visto que naquele local e arredores não havia qualquer tipo de protecção ou fortificação, bastando atravessar uma zona quase plana do campo, junto de umas hortas, para se chegar à cidade.

Os invasores embarcaram em trinta e duas lanchas, que os levaram até à praia e, enquanto avançavam em direcção ao local do desembarque, foram protegidos pelo fogo de canhões de duas naus holandesas.

Localização da praia de Cacilhas (assinalada com uma seta). Esta praia foi extinta devido à construção do paredão para o Reservatório de Água. Na foto, vêem-se os primeiros aterros do Porto Exterior, que se fizeram a partir do sopé da colina da Guia, bem como o Reservatório de Água, inaugurado em 1936. Junto ao paredão contornava a então Avenida do Doutor Oliveira Salazar (actualmente, Avenida da Amizade).

Os atacantes conseguiram rapidamente chegar à praia e, em seguida, queimaram um barril de pólvora molhada, fazendo assim uma cortina de fumo, a fim de facilitar o desembarque dos soldados holandeses.

Este ataque dos holandeses ocorreu numa altura em que a maioria dos moradores se encontrava fora de Macau, porquanto era a época das compras em Cantão para a viagem anual ao Japão, restando, assim, pouco mais de duas centenas de homens capazes de pegarem em armas para combater, os quais incluíam mosqueteiros, moradores da Cidade, frades dominicanos, jesuítas e escravos.

Antes do amanhecer do dia 24 de Junho, uns homens liderados por António Rodrigues Cavalinho juntaram-se a um grupo de moradores, constituído por portugueses e filhos da terra, e foram todos entrincheirar-se num banco de areia, com o fim de tentar dar alguma resistência inicial, fazendo disparos a tiro de mosquete para a cortina de fumo.

Apesar da poderosa força militar dos holandeses, o grupo de moradores, que procurava defender a Cidade naquele banco de areia junto da praia de Cacilhas, foi favorecido pela sorte, pois logo no início do combate, o almirante Reijersen foi atingido no ventre por um tiro de mosquete, disparado ao acaso contra a cortina de fumaça, e caiu ferido, tendo sido imediatamente retirado e levado para a sua nau.

As tropas holandesas desembarcaram, sem mais incidentes, com os seus petrechos de guerra, às quais se juntaram mercenários de diferentes nacionalidades, incluindo japoneses e bandaneses.

Estando o almirante Reijersen fora do combate, o veterano capitão Hans Ruffijn assumiu o comando da força de desembarque, tendo, de imediato, organizado duas companhias de retaguarda para ficarem estacionadas na praia de Cacilhas, destinadas a cobrir a retirada do corpo principal, caso o ataque à Cidade não tivesse êxito. Feito isso, Hans Ruffijn deu início à marcha, avançando com seiscentos homens em direcção à Cidade.

Entretanto, não sendo possível deter a fúria do inimigo, pois os defensores estavam em inferioridade numérica, António Cavalinho deu ordem de retirada e, enquanto se retiravam, viravam-se, de vez em quando, para disparar, com o objectivo de causar alguma confusão ao inimigo.

Retrocederam até onde havia uns penhascos na encosta da colina da Guia e puseram-se então de emboscada por cima de uma zona descoberta por onde os invasores teriam de passar para chegarem à Cidade.

Os comandantes dos baluartes de S. Francisco e de Bom Parto, ao tomarem conhecimento do ataque dos holandeses por terra, solicitaram ao de São Tiago o envio de reforços, tendo sido despachados, de imediato, 50 mosqueteiros sob as ordens do capitão João Soares Vivas, para fazerem frente ao avanço dos inimigos, enquanto que o Capitão-mor da Viagem do Japão, Lopo Sarmento de Carvalho, mais um punhado de homens, guardava a via de acesso à Cidade, visto que naquele sítio não havia sequer muralha ou porta da Cidade, a não ser um bambual, que existia ali próximo.

Perante este cenário, o exército holandês, enquanto marchava em direcção à Cidade, a dada altura, estava surpreendido por não ver gente, nem mesmo resistência à sua frente, desconfiando, assim, que alguma emboscada estava a ser montada, provavelmente atrás de um bambual ou de alguns penhascos.

Sem oposição, o exército holandês foi acelerando a marcha ao ritmo de tambores, animado com gritos e cânticos, mas assim que chegou ao sítio conhecido por Fontinha (que, depois, passou a ser conhecido por Campo da Vitória), ocorreu o momento decisivo do ataque inimigo. Foi então que o Pe. Jerónimo Rho (ou Giacomo Rho), um italiano e grande matemático jesuíta (também conhecido pelo nome de Luo Yagu 羅雅谷, em chinês), vendo que as tropas holandesas tinham chegado àquele sítio, já dentro do alcance do tiro de canhão, disparou do cimo da Fortaleza de S. Paulo do Monte, ainda em construção, alguns tiros, um dos quais atingiu em cheio um vagão carregado de barris de pólvora, causando logo uma enorme explosão no meio do exército holandês, matando mais de uma centena de soldados e ferindo outros tantos. Foi um golpe fatal, que liquidou todas as esperanças dos holandeses e, se tal não tivesse acontecido, o resultado da batalha poderia ter sido catastrófico para as gentes de Macau.

O exército inimigo ficou completamente desorientado, devido ao pavor causado pela explosão. O capitão Hans Ruffijn ainda exortou os seus compatriotas a resistirem, mas ele, pouco depois, foi atingido por um tiro e caiu morto. Perante esta situação, as tropas holandesas, desnorteadas e apavoradas, iniciaram a debandada, visto que estavam sem comando e, sobretudo, já não estavam em condições de continuar o combate devido à escassez de pólvora. Houve até mercenários que desertaram, um dos quais, um japonês, informou os portugueses de que os invasores estavam mesmo em desespero, por falta de munições para combater.

Vendo-os em pânico, Lopo Sarmento de Carvalho fez sinal para o contra-ataque e, de imediato, as tropas portuguesas, moradores, filhos da terra e escravos negros, que estavam a defender a Cidade, aos gritos de guerra e fazendo grande alarido, lançaram-se ao contra-ataque. Contaram que apareceram uns escravos negros bêbados, que não poupando nenhum inimigo em fuga, iam decapitando todos os que encontravam à frente deles.

A debandada foi geral. Entretanto, houve um grupo de invasores que ainda tentou subir à árida e rochosa colina da Guia, mas foi repelido por Rodrigo Ferreira e seus subordinados, que ali defendiam o acesso à ermida e, por conseguinte, teve de retroceder e fugir o mais rapidamente possível em direcção à praia de Cacilhas, onde as naus holandesas estavam ancoradas ao largo.

Enquanto os holandeses retrocediam, fugindo em direcção à praia, as duas companhias de retaguarda, que deveriam proteger a retirada dos seus companheiros, fugiram em pânico para as naus sem disparar um tiro. Os que alcançaram a praia, fugiram em botes, um dos quais, muito superlotado, se afundou, enquanto que vários outros fugitivos, quando tentavam chegar às naus a nado, morreram afogados. Aqueles que não conseguiram escapar, renderam-se, ficando prisioneiros juntamente com os que estavam feridos. Em terra, deixaram espalhados centenas de holandeses e mercenários mortos em combate, juntamente com bandeiras, tambores, uma peça de campanha, alabardas, espadas e mosquetes.

Os holandeses sofreram, portanto, nessa batalha a sua maior derrota em confrontos com os portugueses no Oriente. Segundo uma estimativa mais fiável, o número de mortos teria sido por volta de trezentos, incluindo bandaneses e japoneses.

Em contrapartida, as mortes do nosso lado totalizaram quatro portugueses, dois espanhóis e alguns escravos, tendo cerca de vinte ficado feridos.

Contaram que, na manhã seguinte à derrota, o almirante Reijersen ainda tentou negociar o resgate dos prisioneiros, mas sem sucesso. Deste modo, a frota holandesa afastou-se da costa e seguiu depois em direcção às Ilhas Pescadores, um arquipélago situado no Estreito da Formosa (Taiwan). Essas ilhas já eram frequentadas por naus holandesas onde, de quando em quando, lá aportavam, para atacarem as embarcações que por lá passavam e, também, para pressionarem as autoridades chinesas a conceder uma autorização que lhes permitisse o comércio com a China.

Sabe-se que Jan Pieterszoon Coen, quando recebeu a notícia da derrota, ficou irritado e extremamente amargurado com o resultado da batalha, tendo referido que “desta maneira vergonhosa, perdemos a maioria de nossos melhores homens, juntamente com a maior parte das armas“, porquanto, entre os oficiais holandeses, 7 capitães, 4 tenentes, 7 alferes e 7 sargentos morreram na batalha.

A VALENTIA DOS MOÇOS

Apesar de terem dado enorme realce às tropas portuguesas, que estavam em inferioridade numérica, na vitoriosa batalha contra os holandeses, merece também destacar o contributo prestado por “moços”, ou seja, os escravos, sobretudo escravos negros, que demonstraram grande bravura no combate, tendo corajosamente ido no encalço dos holandeses, matando e decapitando todos os que foram apanhados.

Pelo contributo, bravura e coragem daqueles “moços”, muitos deles foram recompensados pelos seus donos, que lhes concederam alforria logo após a vitória, tornando-se, assim, homens livres.

Foram então contadas tantas histórias sobre a actuação e a bravura dos negros que o Haitao (海道副使), Subintendente da Defesa Costeira, muito impressionado com aquelas histórias que se espalharam de boca em boca, mandou logo oferecer 200 picos de arroz, para serem distribuídos entre eles, como recompensa pelo contributo que deram na defesa do território chinês.

O PRIMEIRO PADROEIRO DA CIDADE

A vitória sobre os holandeses foi para Macau um milagre, tendo a salvação desta Cidade sido atribuída a São João Baptista, visto que a batalha se deu em 24 de Junho, dia em que é celebrada a festa deste Santo.

Imagem de São João Baptista que outrora era levada em andor nas procissões em honra deste Padroeiro da Cidade

Terminada a batalha, os vitoriosos portugueses e muitos moradores foram à Sé Catedral dar graças pela vitória, tendo o Senado prometido, dali em diante, igual comemoração na véspera da festa de São João Baptista. Dado que o povo acreditou que a vitória alcançada se deveu à miraculosa intervenção de São João Baptista, foi este Santo proclamado Padroeiro da Cidade, passando o dia 24 de Junho a ser o Dia da Vitória e, mais tarde, designado DIA DA CIDADE.

O VOTO DA CIDADE

Após a extraordinária vitória alcançada pelas tropas portuguesas, com auxílio de moradores e “moços”, ou seja, criados e escravos negros, o Leal Senado fez um voto solene – o “voto” da Cidade, naquele ano de 1622, pelo qual foi instituída uma Festa em honra de São João Baptista, o Santo Protector da Cidade, com missa e procissão, a celebrar anualmente nos dias 23 e 24 de Junho. Não se sabe ao certo se aquele “voto” foi sempre cumprido e celebrado ao longo dos tempos, porquanto só em 1871 é que foi dado maior destaque à comemoração da vitória contra os holandeses, quando foi erigido um monumento condigno, com jardim, no sítio que passou a ser designado Praça da Vitória.

Até princípios dos anos sessenta do século XIX, além dos trabalhos de alguns autores, parece não haver registos mais detalhados sobre a invasão dos holandeses em 1622, nem notícias sobre o modo como era celebrado o “votoda Cidade, incluindo as festas de São João Baptista.

Nas pesquisas feitas em periódicos ou jornais da primeira metade do século XIX, as notícias que publicavam não davam especial destaque sobre as comemorações ou festividades de São João Baptista, nem onde e como eram celebradas, a não ser breves referências ou descrições sobre a passagem de mais um aniversário de “este memorável dia”, tal como a notícia publicada no jornal O Macaísta Imparcial, de 23 de Junho de 1836, com os habituais elogios aos feitos alcançados pelos portugueses, não fazendo sequer uma menção da missa ou procissão, que eventualmente teria havido naquele dia, em cumprimento da promessa feita.

No entanto, em 1862, para comemoração de mais um aniversário da vitória sobre os holandeses, foi publicado um texto de António Feliciano Marques Pereira, no Boletim do Governo de Macau, Vol. VIII, nº. 30, pg. 119, de 28.06.1862, o qual, conforme mencionou Charles Boxer, foi “elaborado à vista de documentos coevos no cartório do Senado e algures que o autor conseguiu consultar, mas que já não existem”. Trata-se, portanto, de um importante trabalho com informações mais detalhadas sobre o que foi a maior derrota dos holandeses no Oriente quando entraram por terra e atacaram a Cidade de Macau, cujo combate entre invasores e portugueses ficou conhecido por Batalha de Macau.

FOTOGRAFIAS DO MONUMENTO DA VITÓRIA DE OUTRORA E PRESENTEMENTE

Foto ca. 1920
Foto anos 50 do século XX
Foto MV Basilio, em 2021
Foto MV Basilio, em 2021

3 comentários em “Dia de Macau – 24 de Junho de 2022 celebra 400 anos da maior derrota dos holandeses no Oriente, e Manuel V. Basílio nos conta como foi

  1. Pingback: Dia de Macau – 24 de Junho de 2022 celebra 400 anos da maior derrota dos holandeses no Oriente, e Manuel V. Basílio nos conta como foi – Blog do Projecto Memória Macaense

  2. Majão Ferreira
    24/06/2022

    Muito obrigada, Rogério, tomei a liberdade de partilhar no Facebook. Um abraço da Majão Ferreira

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

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O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
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