Cronicas Macaenses

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“A Trança Feiticeira” – o filme do romance de Henrique de Senna Fernandes em, CD da trilha sonora e livro

A Trança Feiticeira (The Bewitching Braid), um dos mais conhecidos romances escrito pelo macaense Henrique de Senna Fernandes, virou filme e ganhou um belo CD produzido pelo brasileiro Veiga Jardim.

Nesta postagem vamos conhecer em capítulos, o filme que pode ser assistido pelo YouTube, o CD com a música-tema e o livro, que também foi publicado no Brasil, com reprodução de um trecho do romance.

O romance reproduz bem a formação da gente Macaense, uma mistura de raças principalmente de portugueses com chineses. Traz para o autor deste blog a recordação emocionante do seu avô materno, Sabino Dias, que vindo de Setúbal, em Portugal, para Macau, uniu-se com a sua avó chinesa que passou a chamar-se – Maria, aos quais dedica esta postagem.

O filme – “A Trança Feiticeira”

Cartaz do filme A Trança Feiticeira

O filme conta a história de um conturbado romance vivido por Adozindo de ascendência portuguesa e a bela chinesa A-Leng, nos tempos em que havia certas restrições para a união civil entre raças diferentes em Macau.

Macau, para quem desconhece, foi um território português, uma península do continente chinês, por cerca de 420 anos. Foi devolvido para a República Popular da China em 20 de dezembro de 1999, numa transição pacífica negociada por anos.

Sinopse do filme (texto do livro)

A TRANÇA FEITICEIRA é uma história de amor que se passa em Macau, China, entre um moço rico de origem portuguesa e uma moça pobre chinesa. Tradições e preconceitos agitam a trama no confronto entre duas culturas que se estranham desde o século XVI. Temperado pelas agruras do racismo, a paixão juvenil de dois amantes condenados e a intolerância que os faz sofrer, o romance nos envolve com uma narrativa primorosa, poética, delicada e irreverente, uma belíssima história de amor e de superação.

O filme foi exibido em São Paulo, Brasil, na 21ª Mostra Internacional de Cinema de 1997 conforme publicação abaixo:

Premiação

“A Trança Feiticeira” já foi exibido em mostras na China, no Brasil e em Portugal onde ganhou prêmio no 25º Festival de Figueira da Foz. A atriz Ning Jing foi eleita melhor atriz no Festival de Cinema da Universidade de Pequim.

A notícia publicada no Jornal Tribuna de Macau, na época, em Julho de 1996, sobre a estreia do filme em Macau:

“O filme “A Trança Feiticeira”, em que Ricardo Corriço contracena a actriz chinesa Ning Jing, estreia domingo em Macau, numa sessão pública a que assiste o governador Rocha Vieira, anunciou a produtora “Cai Brothers”. Assistem também à estreia do filme, baseado no romance homónimo do escritor macaense Henrique de Senna Fernandes, representantes dos Ministérios da Cultura e da Rádio e Televisão da China e uma delegação da Associação de Cinema de Xangai. Dirigido por Cai Yuan Yuan, vice-director da “Cai Brothers”, o filme foi rodado em 1995 maioritariamente em Macau e em Zhuhai, com um orçamento inicial de oito milhões de patacas. Falando numa conferência de imprensa para apresentação do filme, o gerente-geral da empresa produtora, Choi On On, referiu que ao orçamento inicial será necessário adicionar as despesas de distribuição, nomeadamente na China, calculadas para já em pelo menos dois milhões de patacas. Cai Yuan Yuan manifestou-se esperançada em que o governo local contribua financeiramente para as despesas de promoção e distribuição de “A Trança Feiticeira”, tendo em conta que se trata de um filme sobre Macau, depois de pedidos anteriores não terem sido considerados. “Apresentámos um novo pedido e estamos esperançados em receber um subsídio do governo de Macau”, disse. Choi On On admitiu, por sua vez, que a “Cai Brothers”, que produziu o filme em parceria com uma empresa de Zhuhai, receberá com agrado possíveis apoios do governo português, nomeadamente para a promoção e distribuição de “A Trança Feiticeira” em Portugal, mas excluiu a hipótese de solicitar directamente tais apoios às autoridades portuguesas ou chinesas. “Somos residentes de Macau e a companhia está registada em Macau, pelo que os apoios devem ser solicitados ao governo de Macau”, explicou. Choi On On e Cai Yuan Yuan sublinharam também o facto de o filme ter reunido actores portugueses e chineses, destacando, em particular, o profissionalismo de Ricardo Carriço, e manifestaram-se esperançados em que o êxito desta colaboração suscite novas experiências cinematográficas luso-chinesas. Para Wang Zeng Yang, do Instituto Cultural de Macau, o filme e o romance de Henrique de Senna Fernandes são meios importantes de registo das vivências próprias do território, caracterizadas por uma história secular de encontros de culturas diferentes. A estreia em Macau de “A Trança Feiticeira” será aproveitada para a realização de um debate sobre cinema, no sábado, que contará com a participação de representantes de associações chinesas ligadas ao sector.” (Texto original do Jornal Tribuna de Macau)

O CD da trilha sonora do filme

Capa do CD com a bela atriz chinesa Ning Jing que no filme é A Leng
Imagem do livreto do CD

As músicas do CD foram compostas e executadas por Veiga Jardim

VEIGA JARDIM nasceu no Rio de Janeiro, Brasil, onde começou a sua carreira de maestro nos seus 17 anos de idade. Depois, graduou-se, com louvores, em Condução e Composição na Faculdade de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1987, ganhou o Prémio Nacional Dell’Arte que o permitiu seguir os estudos na Europa. Passou pela Accademia Musicale Chigiana em Siena, sob a orientação de Gennadi Rozhdestvensky, que o convidou para estudar no Conservatório de Moscou. Veiga Jardim conduziu muitos Coros e Orquestras no Brasil, e também em Lisboa, Hong Kong, China, San Remo e Bulgária (dados até 1996). Lecionou também na Universidade de Macau. (Dados biográficos da época do CD em 1996)

Veiga Jardim nas duas imagens a seguir conta sobre o filme e a montagem da trilha sonora

Imagem do livreto do CD
Imagem do livreto do CD
Imagem do livreto do CD

Assista o vídeo abaixo produzido pelo autor deste blog com a música tema do filme – A Trança Feiticeira. Trata-se de gravação de ensaios dos associados da Casa de Macau de São Paulo para apresentação no Encontro das Comunidades Macaenses de 1999

Ouça a música tema do filme clicando no link abaixo:

https://cronicasmacaenses.files.wordpress.com/2012/11/a-tranca-feiticeira-de-veiga-jardim.mp3

Imagem do livreto do CD
Imagem do livreto do CD
Imagem do livreto do CD
Imagem do livreto do CD (clique para aumentar/press to larger size) – Apresentação em chinês do filme e a montagem da trilha sonora
Imagem do livreto do CD

O livro

O livro, na data de publicação desta postagem, podia ser adquirido no Brasil com a capa conforme imagens abaixo. Basta pesquisar o título e vai achar várias ofertas a preços módicos, tal como na Amazon. No País foi impresso em 2009 pela Gryphus Editora

Capa do livro impresso no Brasil

Breve biografia de Henrique de Senna Fernandes

(reprodução do texto da Gryphus, editora do livro publicado no Brasil)

Reunião na Casa de Macau de Portugal em 2004. Frente/da sua esquerda – Lourenço Rosário, Luís Machado, Vitor Serra, Henrique Senna Fernandes, José M.Rodrigues, Sebastião Rosa. Atrás/da sua esquerda – Rogério Luz (autor deste blog) , António Estácio, Júlio Branco, Francisco Rodrigues e José Achiam.
Henrique de Senna Fernandes na Casa de Macau de São Paulo em 2006, Foto: Rogério P D Luz

Henrique de Senna Fernandes (Macau, 15 de outubro de 1923 — Macau, 4 de outubro de 2010) foi a personificação da Macau do século XX. Nascido em 1923 neste pequeno enclave na foz do Rio das Pérolas, acompanhou de perto a transição deste território sob administração de Portugal desde 1557 até o arriar da bandeira portuguesa em 1999. Com mais de 400 anos de história, Macau foi o primeiro entreposto e a última colônia europeia na China. Henrique era filho de uma das mais antigas e ilustres famílias de luso-descendentes de Macau, parente do 1.° Barão de Sena Fernandes. Teve uma vida próspera com os seus onze irmãos até ao início da Segunda Guerra Mundial, quando o pai perdeu o dinheiro da família na Bolsa de Valores de Hong Kong. Mesmo com as dificuldades que lhe iam surgindo por causa disso, ele nunca desistiu e conseguiu formar-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sendo seu companheiro de estudo e de casa o também macaense Carlos Augusto Corrêa Paes d’Assumpção. Voltando para Macau, montou um escritório e exerceu advocacia, mas apenas para conseguir independência financeira. As suas grandes paixões e vocações foram o ensino e a escrita. No campo do ensino, foi professor e diretor da Escola Comercial Pedro Nolasco. Como advogado, foi presidente da direção da Associação dos Advogados de Macau em 1991-1995. Como escritor retratou o Macau antigo dos anos 30, 40 e 50, através de livros como “Nam Van – Contos de Macau”, “Amor e Dedinhos de Pé”, “A Trança Feiticeira” e “Mong-Há – Contos de Macau”. Além do tema do Macau antigo, outros temas centrais da sua obra literária eram a mulher e o amor. Frequentemente, os seus livros envolvem as complexas relações entre as três comunidades de Macau (a chinesa, a portuguesa e a macaense) e uma relação amorosa entre uma rapariga chinesa e um rapaz macaense ou português. De algum modo, estas relações descritas nos seus livros têm paralelos com a sua vida amorosa: ele amou e casou-se com uma mulher chinesa, desafiando as convenções de uma cidade que naquela época era muito conservadora . Dois dos seus livros (“A Trança Feiticeira” e “Amor e Dedinhos de Pé”) foram adaptados ao cinema. (Fonte: Gryphus Editora)

Gazeta Macaense – edição internacional – de 03/11/1993

Capítulo do livro “A Trança Feiticeira” de Henrique de Senna Fernandes (Macau)

(reprodução do texto do artigo da Gazeta Macaense)

* legenda: “kuai-lou = em chinês referência para os estrangeiros, ou, quem não é chinês / kuai-diabo/demônio / lou=homem/gente/pessoa. Exemplo: Pá-sâi-lou = brasileiro ou pessoa do Brasil (Pá sâi). No entanto, iãn também é utilizado: Pôu-kók-iãn=gente(iãn) de Portugal (Pôu-kók) ou Iâp-pún-chai, donde Iâp-pún=Japão e châi=filho ou natural de. Agora troque o lou/iãn/châi por kuai e todos os estrangeiros serão diabos deste ou daquele lugar. Referir-se a quem ‘não é chinês’, especialmente o ocidental, por ‘diabo’ pode ser um ressentimento antigo por invasões sofridas pela China ao longo da sua história por estrangeiros. Agora o macaense, como eu, mestiço de ocidental/oriental nascido em Macau, já é tratado com respeito como tôu-sán-chai=filho da terra.

ESTAVA um belo dia de outono para a pesca, o céu límpido, a paisagem toda alumiada de tons metálicos, como só acontece nos meses de Outubro e Novembro. O Belo Adozindo escapulira de casa cedo, evitando encontrar-se com o pai. Eram sete e meia e encaminhava-se para a Praia Grande, onde embarcaria num barco à vela com amigos, para umas horas ao largo de Macau. Ia apetrechado para a pesca, o caniço e as linhas novas, os anzóis vindos de Hong Kong, duma casa da especialidade, o cesto contendo a isca. Vestia-se todo aperaltado e nada conforme como à vontade que tais excursões exigiam. Seria ridículo se não procedesse com naturalidade e espontaneidade, porque era incapaz de se apresentar doutra forma. O grande conquistador da praça tinha responsabilidades quanto a manter a sua fama. Nunca se sabia quem ia encontrar, embora ainda fosse cedo.

Respirou fundo a brisa matinal, a Estrada da Victória era uma recta dourada e não viu nenhum riquechó. Não se sentiu contrariado, cortou o Jardim de Vasco da Gama, ladeando os chafarizes, onde os fios de água prateada saltitavam, como garotos irrequietos. Para encurtar caminho, dobrou a primeira esquina, intemando-se na área do Cheok Chai Un.

Até então, esquivara-se do bairro de má fama, mas não acreditou que alguém fizesse mal, em pleno dia, a um homem pacífico que ia inocentemente à pesca, com o único peso na consciência de faltar ao trabalho. Mas os berros do pai podiam com facilidade serem amansados.

Chegou, sem novidade, à zona do poço, numa hora de grande actividade, as aguadeiras e lavadeiras a puxar os baldes ou formando bicha, num borborinho de vozes que soavam alegremente. E tudo teria passado despercebido, não ficando nada na memória, senão um quadro inédito se, nesse instante, não espadanasse uma gargalhadinha moça e sadia a evolar-se pelo ar, muito perto. Deteve-se primeiro curioso, depois com súbito interesse pela beleza rústica donde partia o riso. Gostou do que viu. Nunca contemplara uma moça tão atraente, de pé descalço, e nem podia adivinhar que um bairro de «facínoras e desordeiros» entesourasse uma bela jóia como aquela. Nunca vira, também, uma trança igual, tão preta que fulgia ao sol

A-Leng, porque era ela, captou o interesse e teve a desagradável sensação de ser escrutinada de cabeça aos pés. Não estava habituada a um exame tão atrevido, sobretudo, dum estranho e demais kuai-lou. Mais perturbada que irritada, resolveu afastar o insolente, à vista das companheiras.

Ao tirar o balde carregado até o topo, fingiu desequilibrar-se e a água saltou, chapinhando o solo, atingindo os sapatos e as calças bem vincadas do Belo Adozindo. Não pediu desculpas, voltando-se para encher de novo o balde. Houve risos que doeram mais ao rapaz do que o mau jeito dela, feito de propósito.

Sem  pronunciar  palavra, Adozindo seguiu caminho, enxofrado de despeito. Era a primeira vez que uma mulher se atrevia a desdenhá-lo. Em vez de enlanguescer-se perante a sua beleza irresistível, a rapariga ousava sujar-lhe os sapatos lustrosos e as calças, sem se desculpar. E era uma aguadeira ou lavadeira, de categoria abaixo duma criada de servir. A desfaçatez! Ali estava um exemplo da decantada mal-criação da gente do Cheok Chai Un. Nunca mais poria os pés ali.

O brilho do sol, a aragem refrescante que bolia com as árvores de S. José da Rua do Campo, a temperatura, seca do melhor mês do ano, dissiparam-lhe o abespinhamento. Não ia consumir a sua disposição numa zanga fútil, por causa duma aguadeira.

Volveu o pensamento para a viúva do Baixo Monte, a estupenda Lucrécia, a sua última conquista que não esperara acabar o luto para se lhe entregar nos braços. Se era rica em bens, mais o era na cama, com aqueles jeitosos seios de rola arrulhante. Enquanto aguardasse o recato do luto, não viria com exigências e podia aproveitar-se bem. Quando completasse um ano, então chegaria o momento da verdade. Mas esta data ainda estava bem longe, tinha muitos meses para planear como descartar-se dela.

Ladeou o Jardim de S. Francisco, onde crianças chilreantes, acompanhadas das criadas, corriam nas áleas dos canteiros, e aproximou-se da muralha que o separava do mar. A baía da Praia Grande, desde o fortim de S. Francisco até a curva do Bom Parto, coalhava-se de juncos e lorchas, na poalha do sol. Encaminhou-se na sombra recolhida das árvores de pagode, cujos murmúrios eram um fundo musical para a cantilena da maré enchente, espumando nos granitos da Praia Grande.

Senhoras vestidas de dó passavam embiocadas, vindas da igreja. As casas assobradadas permaneciam de persianas fechadas, pois a hora era ainda matinal e as moças preferiam a tarde para se postarem à janela. Vendilhões ambulantes apregoavam acepipes avinagrados e achares chineses. O amolador de facas esfalfava-se, rolando a sua maquineta, enquanto, mais adiante, o sapateiro-remendão chamava a clientela, martelando o ferro com o característico «toc-toc».

Olhou para o relógio e apressou-se. Os amigos iriam protestar, pois atrasara-se. Porém, ao pisar o cais de pedra, em plano inclinado, no começo da Avenida Almeida Ribeiro, eles bebiam o tau-fu-fá, que ainda estava quente. O vendedor perguntou-lhe se queria, mas Adozindo recusou. Lançou a vista para o edifício do Banco Nacional Ultramarino, ainda fechado, e depois para o Hotel Riviera, ambos à sua frente.

Na varanda dum quarto do segundo andar, uma loira penteava o cabelo de fartas madeixas, caídas sobre os ombros. Uma inglesa! Nunca experimentara uma inglesa. Para a sua colecção, seria um espécime verdadeiramente singular. Ela, do alto, observou-o indiferente, continuando o deslizar o pente pelos cabelos. Ele, em baixo, pôs-se logo em postura fatal, sem avaliar o possível ridículo.

–              Não me digas que também foi tua.

–              Não foi, mas se viver em Macau, sê-lo-á.

–              Não podes ir muito longe, com esses sapatos sujos!

Diabo, que se esquecera deles! Com os salpicos de água, os sapatos tinham as marcas secas de lama e poeira. Estragavam-lhe o perfil romântico: Estupor da aguadeira! Precisava duma lição, a descarada.

Foi um passeio magnífico, de peixe abundante e compensador, e almoçaram numa clareira dos Sete Tanques da Taipa. Com o êxito das suas qualidades de pescador, Adozindo esqueceu-se dos seus estafados gabanços, para alívio dos seus ocmpanheiros. Ficaram até a conhecê-lo melhor e ao seu lado simples e cativante. O regresso fez-se já noite e, no caminho da casa e cheirando a peixe, tomou a súbita decisão de atravessar o Cheok Chai Un.

Cruzou-se com pouca gente, recolhia-se ali cedo, e não viu a sombra de aguadeira nenhuma. Em casa, ouviu a repetidíssima descompostura do pai, a que não ligou, apoiado no coro das mulheres que tentavam justificá-lo. Ao deitar-se, o vulto da aguadeira apareceu, como um espinho no seu orgulho.

Durante uma semana e tal, olvidou o Cheok Chai Un. Afinal, era uma coisa sem importância que não merecia um cisco de preocupação. No entanto, ao ver passar pela estrada uma aguadeira de meia-idade e exausta, lembrou-se da negridão doutra trança. O despeito, de novo, amargou-lhe a boca. Imprudentemente, retomou o mesmo trajecto do dia da pesca.

A hora fremente do poço tinha passado. Ao aproximar-se do sítio, viu o vazio do movimento, apenas duas mulheres que puxavam sossegadamente as cordas donde pendiam pequenos baldes. Mas logo, junto dum paredão, descobriu duas penteadeiras; em volta das quais, uma mancheia de aguadeiras e lavadeiras se acocoravam, â espera da vez, num zumbido gárrulo e estouvado.

Uma delas precisamente cravava o pente no negrume dos cabelos da aguadeira malcriada, esticando-os para trás, o que obrigava a jovem a elevar o queixo e a mostrar o traço fino do seu pescoço e o relevo atenuado do peito. Era linda a aguadeira!

Parou, para observar melhor. Nem lhe faiscou na mente que estava no Cheok Chai Un, num bairro de má fama, onde se penetrava apressadamente para cortar caminho e nunca para visitar e ficar. Nem que o seu procedimento podia afrontar, por incorrecto e insultuoso. Achava até natural o exame àquele conjunto de mulheres descalças, como a um cenário exótico.

A algaraviada solta e despreocupada interrompeu-se. Os rostos afivelaram linhas duras, as moças, as mais tímidas, a encolherem-se, enquanto as penteadeiras resmungavam indignadas.

Os «kuai-lous» que pelo bairro apareciam sumiam-se lepidamente. Aquela era a primeira vez que um se petrificava diante delas, com um desplante inqualificável. A-Leng foi a única que se mostrou senhora de si. As narinas principiaram a inflar. Aquele rapaz era o mesmo doutro dia. Mais uma vez se confirmava que os «kuai-lous» não tinham maneiras. Não se mirava assim, como se ela e as amigas fossem simples galinhas expostas no mercado.

–              O que está a olhar? Nunca viu mulher nenhuma?

Outra vez enxotado como um cão tinhoso. Uma garota de pé descalço, uma criatura abaixo do nível de criada tinha a coragem de enxovalhá-lo, a ele, o Belo Adozinho. Pelos vistos, a petulante não se impressionara com a sua aparência e indumentária de grão-senhor. E a saber que tantas mulheres morriam por desejar que ele se lhes plantasse em frente.

–              Admirava o seu cabelo – respondeu, num chinês de sotaque, mas perfeitamente compreensível.

Era um espanto que falasse a língua. Mas dominou-se e disse com aspereza:

–              Já admirou bastante. Toca a andar…

A voz fina soava ameaçadora. Não ia diminuir-se nem tremer, no meio daquela assistência. Na mão surgira uma pedra desgarrada da calçada. Se teimasse, a rapariga era bem capaz de lançá-la, gritando depois, em algazarra. Corou e obedeceu. Deixou atrás um coro de gozo e o estilhaçar de gargalhadas.

O prestígio de A-Leng cresceu. Desafiara um «kuai-lou» e este fugira. A notícia espalhou-se pelos becos e vielas do Cheok Chai Un, com os exageros. À noite, já havia quem afirmasse que fora à pedrada e o «diabo» batera em retirada, tremelicando de pavor. Os afagos da Abelha-Mestra foram nessa noite mais eloquentes. Não havia dúvida que A-Leng era a princesa. (Gazeta Macaense)

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Autoria do blog-magazine

Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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