Cronicas Macaenses

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Relembrar o Natal macaense

O excelente artigo de Pedro Daniel Oliveira publicado no jornal católico de Macau –  O CLARIM – edição 20/12/2011, reproduz bem os nossos costumes natalinos dos velhos tempos de uma Macau mais humana.  Era o Natal da gente da comunidade de língua portuguesa, e porque não também de outras línguas, na Macau antiga ainda sob a administração portuguesa.  Leia, conheça, mate as saudades:

NATAL TRADICIONAL MACAENSE NA PRIMEIRA PESSOA

Quando o ponto alto era a Missa do Galo

Já lá vão muitas décadas em que o ponto alto da quadra natalícia para as famílias tradicionais macaenses era a ida à Missa do Galo. Naqueles tempos, pediam-se prendas ao Menino Jesus. Quanto à importância do Pai Natal – essa – só chegou mais tarde. Dona Aida, Jorge Rangel, Anabela Ritchie, Miguel de Senna Fernandes, Carlos Marreiros e Luís Machado falam de vários costumes que ainda perduram e de outros que caíram em desuso.

AIDA de Jesus, mais conhecida por Dona Aida, de 96 anos, teve um Natal muito diferente daquele que se vive actualmente. «Jantava sempre com a família. Ia à Missa do Galo e, na volta, havia a ceia. Antes, todas as casas de macaenses tinham o presépio “arrumado” [exposto]. À volta de uma mesa muito comprida sentavam-se também cunhados, genros, sobrinhos e primos», explica esta senhora maquista dos «quatro costados».

Dona Aida passou felizes quadras natalícias em casa dos seus pais, aos 15 anos, – como é seu hábito dizer – «na rua do hospital de S. Rafael» (actual Consulado de Portugal); e depois, aos 17 anos, na zona do Tap Seac.

«As ruas estavam pouco iluminadas. Só as lojas e os hotéis é que tinham algumas luzes de Natal. A zona mais emblemática era o Largo do Senado. A Câmara Municipal de Macau tinha a tradicional árvore de Natal a ornamentar o local, como ainda acontece. Naquela altura era uma árvore natural; agora é algo artificial», descreve a gerente do restaurante Riquexó.

Outra tradição que se perdeu – acrescentou – é a queima de panchões à janela, efectuada pela maior parte das famílias católicas, durante a ceia após a Missa do Galo. Lá em casa também era habitual a avó Dulcelina falar patuá com a menina Aida, com mais duas netas e alguns familiares.

«Os tempos eram outros, pois vivia-se a quadra com outra intensidade. Actualmente, há muitos católicos em Macau que não vão à Missa do Galo. Preferem ir passear para o estrangeiro».

Dona Aida recorda-se de ter malas e carteiras como prendas, daquelas que «eram bonitas». À mesa da família havia, quanto a carnes: o tacho, a perna de peru e o capão assado; e, quanto a peixe: o bacalhau com grão; quanto a doces: a alua, os coscorões, as fartes, o «cake» e o pudim de ovos. Aliás, estas também são algumas guloseimas que actualmente se vendem no Riquexó durante a quadra natalícia.

Ainda no desfolhar de memórias, Dona Aida recorda-se de passar o dia de Natal na casa de uma amiga. «Ia jantar com os miúdos da minha idade. Não havia rádio, nem televisão. Ouvia-se música pelo gramofone e dançávamos. Havia sempre alguém disponível para dar à manivela para que o disco tocasse».

Outra geração

No seu tempo de criança, as prendas que Jorge Rangel mais apreciava eram livros, soldadinhos de chumbo e carrinhos em miniatura. Outros rapazes podiam preferir bolas ou jogos; as meninas procuravam bonecas e casinhas. As poucas lojas de brinquedos, quase todas situadas na rua das «Mariazinhas», não tinham mãos a medir. Hoje, as novas tecnologias criaram outros hábitos de consumo e as apetências dos miúdos tornaram-se muito mais sofisticadas.

«O presépio foi, para nós, durante muito tempo, mais importante do que o Pai Natal. Nem todos os pais e avós gostavam desta figura, mas a sua presença foi-se impondo, inevitavelmente. Nas casas macaenses, ambos têm lugar. O presépio representa a tradição, a religiosidade, o símbolo verdadeiro e a razão de ser do Natal. É, afinal, a própria imagem da quadra natalícia. O Pai Natal, por sua vez, liga o religioso ao profano. Está mais identificado com o lado lúdico, comercial e consumista da época festiva», explica o também presidente do Instituto Internacional de Macau.

O Natal era preparado com cerca de três semanas de antecedência na casa da família de Anabela Ritchie. «Por exemplo, os “cakes” eram embrulhados depois de confeccionados, e assim ficavam até ao dia de Natal. Fazia-se também o presépio e compravam-se prendas», relembra a ex-presidente da Assembleia Legislativa.

«No dia 24 de Dezembro, as crianças ainda dormiam um bocadinho depois de jantar. Lembro-me que tinha muito frio, pois saía do quentinho. Uma coisa muito importante nos meus tempos de miúda era a roupa nova que habitualmente se vestia, seja interior, exterior, sapatos ou meias. Ia depois à Missa do Galo com os meus pais. No regresso a casa, a família ajoelhava-se em redor do presépio e rezava; a seguir, ceava. Lembro-me sempre da canja de galinha, dos bolos de Natal e das empadas. Só depois é que havia a troca de prendas», explica Anabela Ritchie, de 62 anos.

Normalmente, eram os pais que davam os presentes às crianças: «Quando era miúda havia o Pai Natal, que não tinha a força de agora. Escrevíamos, previamente, as cartas ao Menino Jesus a pedir presentes. No dia de Natal, ficávamos muitos surpreendidas, porque o Menino Jesus tinha adivinhado o que queríamos».

Miguel de Senna Fernandes ficava sempre deslumbrado com a quadra natalícia. «Por volta dos dez anos tudo era grande para mim, com muitas prendas e, principalmente, comida. A minha avó Maria Luísa, também conhecida por Dona Zete, era uma exímia cozinheira, assim como as suas amigas. Em Macau, sempre abundaram as senhoras “mãos de fada”. Lembro-me que, naquela altura, as cozinheiras “desfilavam” com as suas versões de bolo-menino. A receita parece agora ser mais unânime. Havia também o bolo-rei, mas não era para todos. Também não era o mais importante. Um doce famoso era o “plum pudding”, certamente, por influência dos britânicos de Hong Kong», descreve o advogado, de 50 anos.

Já quanto a prendas, salienta: «Dava estatuto a todos os brinquedos que fossem adquiridos em Hong Kong. As crianças gostavam de triciclos ou de cavalos de madeira para embalar. Eu gostava dos carros de corrida em plástico. O primeiro “kit” que tive foi um carro da marca Chaparral».

A consoada era passada em casa da avó, sendo que a ida à Missa do Galo também fazia parte dos costumes da família Senna Fernandes. «Acabada a missa, o que mais me agradava dizer era “boas festas”, e dar o aperto de mão. Sentia-me como uma pessoa importante, um homem grande».

Naquela altura – continua o presidente da Associação dos Macaenses (ADM) – o Pai Natal não era uma figura preponderante. «Era muito luxo. Existia, sim; mas nas festas do Clube Macau. Aqui, os filhos dos sócios tinham todos direito a receber prendas», refere Miguel de Senna Fernandes.

Por essa razão, também não foi de estranhar que, por altura da festa de Natal da ADM, realizada no passado sábado, na Torre de Macau, os filhos dos sócios com menos de 12 anos de idade tivessem recebido uma prenda do Pai Natal.

Presépio

As memórias mais antigas do arquitecto Carlos Marreiros remontam ao tempo dos seus cinco a dez anos de idade. «Passava o Natal em casa do meu avô materno, José Maria de Jesus dos Santos. Tenho uma lembrança forte do presépio, mais do que da árvore de Natal». O presépio – recorda – estava sempre num ponto ligeiramente acima do chão, com as prendas logo no sopé deste enfeite.

«Um dos meus doces preferidos eram as almofadas do Menino Jesus. Havia vinho do Porto para os mais crescidos, que também bebiam vinho tinto. Dava-me muito gozo ouvir as músicas de Natal; não como aquelas que tocam actualmente, pois soam muito a comercial. Antes, ouviam-se músicas clássicas de índole religiosa, com discos de vinil que tocavam no gira-discos da marca JBC». Marreiros, de 54 anos, também adorava passear com o avô, para ver os presépios públicos de Macau.

Já o médico Alfredo Ritchie, de 65 anos, lembra-se de ouvir a avó materna, Júlia Rosa Rodrigues Sales, a falar patuá durante a quadra natalícia.

Por seu lado, o secretário-geral da Cáritas, quando tinha nove ou dez anos, residia no Instituto Helen Liang (das missionárias Dominicanas), perto do Palácio da Praia Grande. Embora de etnia chinesa, Paul Pun, agora com 54 anos, seguiu desde muito cedo os usos e os costumes dos macaenses e dos portugueses. «Eu vivia no dormitório. Tinha direito a uma pequena prenda e íamos à missa, na igreja de S. Lourenço. Era uma quadra em que a luz abundava perto da residência do então Governador, na zona da Avenida da Praia Grande. Para nós, crianças, ver luz daquela maneira era uma coisa espantosa. Hoje é algo normal», afirma Paul Pun.

Gastronomia

São muitas as tradições natalícias que ainda se mantêm no seio de algumas famílias macaenses. Contudo, se antes a natividade era festejada nas casas senhoriais, por exemplo, da baía da Praia Grande ou da Penha, agora acontece maioritariamente nos apartamentos de habitação.

«A época do Natal era sempre sinónimo de mesa “farta”. No entanto, a refeição antes da meia-noite era feita com simplicidade, para ir ao encontro dos antigos preceitos da Igreja Católica Apostólica Romana. Era uma época em que se praticava o jejum, mas não a abstinência total. Ou seja, até à ceia de Natal não se ingeriam carnes. Assim, a refeição que precedia a ida à Missa do Galo era composta pela sopa de lacassá (aletria) e empada de peixe», explica o presidente da Confraria da Gastronomia Macaense.

O ponto mais alto era, pois, a ceia de Natal, já depois da Missa do Galo, bem como o almoço a 25 de Dezembro. «Neste dia, abundavam à mesa vários tipos de carnes e de doces. A tradição do jejum foi-se perdendo, com incidência a partir da Guerra do Pacífico; mas também por causa dos vários obstáculos dos tempos modernos, tais como o espaço das cozinhas ser pequeno e a falta de pessoal doméstico para ajudar as donas de casa, etc.», acrescenta Luís Machado.

Algumas das iguarias que compõem a mesa natalícia das famílias maquistas mais tradicionais são, nos doces: a sola de anjo (cavacas), os cabelos de noiva (fios de ovos), os sonhos – ambos de origem portuguesa, – as fartes (almofada do Menino Jesus), os ginetes, o bolo-menino, a alua, o «Christmas cake» («cake»); nas carnes: o porco bafá-assá, o peru – este, certamente, um hábito trazido pelos ingleses da ex-colónia britânica, em finais do século XIX, – o tacho e os chilicotes.

Com tanta abundância, muito naturalmente, havia sobras da quadra festiva, que deram origem a um novo prato maquista. O «diabo» é uma receita antiga que se confeccionava, por exemplo, há mais de 80 anos, na casa da família Jorge, no Beco do Lilau.

«Uma teoria minha é que o nome terá vindo do facto de ser uma comida muito picante, por isso, “quente”. É um prato que leva muito caril, malagueta e açafrão; daí a cor amarelo-avermelhada, a fazer lembrar o inferno», explica a jornalista e investigadora da identidade macaense, Cecília Jorge.

PEDRO DANIEL OLIVEIRA

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Publicado às 05/01/2012 por em MACAENSES, Memória Macaense e marcado , , .

Autoria do blog-magazine

Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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