Na sua série Tacho do Diabo publicada nos anos 90 na Revista Macau, Cecília Jorge escreve sobre o Minchi (Brasil: carne moída), prato típico da gastronomia macaense, e nesta postagem publico duas receitas e na próxima outras três que são citadas no texto. O artigo foi publicada na edição de Junho de 1992 da Revista Macau:
VENHAM DAÍ OS MINCHI
de Cecília Jorge (Junho 1992)
Nenhum prato típico macaense parece ser tão estimado e tão popularizado como o minchi, especialidade que merece a honra de estar incluída no mínguo jargão luso dos cantonenses, ao ponto de o seu nome ser entendido na praça e nos supermercados.
Minchi, ou minche ou mesmo minxi (carne moída) , deve ser corruptela do inglês minced, picado. Quando e por quem foi criado não se sabe, e o mais lógico será ter havido mais do que um autor e uma legião de cultores deste sabor muito próprio aos macaenses.
Porque minchi é macaense, castiço, fruto da convivência de gostos orientais e ocidentais: é a carne cortada em picadinho, para facilitar a vida a quem come (à boa maneira chinesa), e refogada com alho e muita cebola picadinha (à portuguesa). E é o molho de soja casado (às vezes) com um chouriço de carne, com o ovo estrelado a cavalo, mais as batatinhas aos quadradinhos, para se comer com arroz branco, insosso. Ou na versão mais requintada, de entre as muitas dezenas que existem: um minchi de pombo, de camarão ou de peixe.
Não há dois minchi iguais, mesmo que a receita emprestada seja seguida à risca… mas, por paradoxal que possa parecer, um determinado minchi sabe sempre da mesma maneira quando é “marca da casa”, quando parte da mesma cozinheira.
Diz quem sabe, que a singeleza não vem tanto de um qualquer segredo mantido a sete chaves e herdado em sentido descendente da cadeia genealógica como do cunho pessoal, de força e temperamento, e do manipular, do dosear dos temperos, da maneira como se pica a carne, que os mestres faziam com dois parões (cutelos chineses), e das voltas que se lhe dá, ao lume, sabendo quando e como a revirar no tacho para tirar dela o melhor aroma.
E o minchi, quando é bom, sabe mesmo bem; cria hábito, cria vício, traz grande fama a quem o faz, a ponto de ser falado nos convívios de café, recordado pelos gastrónomos. A excelência de um minchi, quando vicia a ponto de a “vítima” não se servir de mais nada dos milhentos acepipes colocados ao seu dispor, atirando-se, de colher em riste, a uma montanha de minchi por cima do arroz branco, dá mesmo origem a uma alcunha muito popular nesta comunidade: o minchi.
A partir do minchi é imensa a capacidade criativa, em busca de uma refeição diferente: são os croquetes, os chilicotes, os pãezinhos recheados; são as mil e uma misturas utilizando outras carnes e vegetais; é o arroz chau-chau; o desenjoo de uma bebinca só de nabos — que não vem, ainda, ao caso.
Dizia um gastrónomo — visivelmente rendido aos sabores da cozinha macaense — tratar-se do melhor prato sino-europeu do mundo e favorito entre os macaenses.
António Vicente Lopes, que em 1977 publicou em Macau as Receitas da Cozinha Macaense, aventava a hipótese de o minchi ter sido aperfeiçoado em Hong Kong, após a primeira diáspora dos macaenses, em 1840, nessa direcção e quando Hong-Kong ficou sob a administração britânica e os nossos recursos trilingues eram muito procurados bem como os nossos conhecimentos euro-orientais dos povos, costumes e comércio.
Obviamente, António Lopes inclui no seu livro nem mais nem menos do que dezasseis receitas de minchi, com variações e aditamentos, que vão desde o minchi de carne congelada de porco e de vaca ao minchi de caril de peixe e aos pastéis, croquetes e hamburguers de minchi (!). Mãozinha de fada devia ter a Ah-Chun, a estimada cozinheira chinesa durante 47 anos dedicada à família de Lopes, a quem ele homenageia no prefácio às Receitas da Cozinha Macaense. É o próprio António Lopes que nos sugere que façamos minchi (…) às dez libras de cada vez para se guardar no congelador em pacotes de uma a duas libras para uso imediato numa variedade de pratos.
Copiando descaradamente o exemplo deste cultor do minchi, ao inserirmos cinco variantes do picadinho, fazemo-lo numa tardia e insuficiente mas sincera homenagem a outra das grandes intérpretes anónimas da culinária macaense: Ah-Noi, de apenas metro e meio de altura, que durante meio século dominou cozinha e copa num casarão do Beco do Lilau, dando de comer a quatro comilonas gerações de Jorges e amigos. Ela e o casarão abandonaram-nos, mas quem provou não esquece, decerto, o sabor do seu minchi, ou de fosse o que fosse que ela se lembrasse de cozinhar.
Apresentamos apenas cinco das suas variantes: a mais vulgar, de carne com batatinhas; só de porco; a mosca, como no Lilau se chamava ao minchi com “orelhas de rato”; pãezinhos fritos de minchi; e lúc-kit, os croquetes de minchi, como Ah-Noi lhes chamava talvez por serem enrolados (lúc, em cantonense) sobre pão ralado.
Apenas dois conselhos vindos da Ah-Noi, mas hoje praticamente impossíveis de seguir: usar sempre carne fresca, picada na altura, e nunca requentar mais do que uma vez o mesmo minchi — rouba-lhe todo o gosto.
2 RECEITAS DE MINCHI
MINCHI DE PORCO
carne de porco –> 250 gr.
Alho –> 1 dente, pisado
cebola-da-índia -> 2 pequenas, picadas
cebolinho picado –> q.b. (a gosto)
molho de soja claro (sám châu) -> 1 colher de sopa
fécula de milho -> meia colher de chá
banha de porco (ou óleo) – > q.b.
açúcar e pimenta –> q.b.
Limpar a carne de tendões, picar miudinho. Temperar com uma pitadinha de açúcar, pimenta, o molho de soja claro e a fécula de milho. Aquecer bem a banha (ou o óleo), aloirar o alho, retirar, fritar em seguida a cebola e o cebolinho e logo depois a carne, virando e carregando com a espátula para a soltar. Tapar o tacho, para cozer em lume médio, mexendo para não pegar no fundo.
MOSCA
carne de porco -> 250 gr.
“orelhas de rato”*, (demolhadas, limpas e picadas) ->15 gr.
Alho -> 1 dente, pisado
cebolinho picado -> q.b. (a gosto)
molho de soja claro (sám châu) -> 1 colher de sopa
fécula de milho -> 1/2 de chá
banha de porco (ou óleo) -> q.b.
açúcar e pimenta -> q.b.
aletria** (para ornamento) -> q.b.
Limpar a carne de gorduras e tendões, picar miudinho. Temperar com uma pitada de açúcar, pimenta, o molho de soja claro e a fécula de milho. Aquecer bem a banha (ou o óleo), aloirar o alho e retirar, fritar o cebolinho e logo a seguir a carne, virando e carregando com a espátula para a soltar. Tapar o tacho, para cozer em lume médio, mexendo para não pegar no fundo. Acrescentar os fungos cerca de um minuto antes de retirar do lume, misturando bem.
*as “orelhas de rato” (van ii ) são fungos. Devem ser demolhados em água morna durante cerca de cinco minutos e depois escolhidos e muito bem lavados com água fria porque trazem areia e muitas impurezas agarradas à raiz.
** a aletria frita-se em óleo fervente, em mancheias, mas com cuidado porque queima em poucos segundos.
(Brasil: orelhas de rato – van ii em chinês cantonense, podem eventualmente ser encontradas nas lojas de alimentos chineses da Praça da Liberdade, São Paulo – Tou Wa ou do Ricardo, ao lado de MacDonald)
Nota: Em São Paulo, a carne moída (equivalente ao minchi) não é um prato disponível em restaurantes como em Macau, mas é preparado com macarrão à bolonhesa com molho de tomate, como recheio de pastel de carne e tantas outras receitas que podem ser achadas na Busca na internet digitando Carne Moída, Brasil. Pode não ter o charme do Minchi, como em Macau, mas é bastante utilizada na culinária brasileira e pode ser comprada em qualquer açougue e supermercado, já pronta e fresquinha, ou pedir para moer na hora, tendo classificação de carne moída de 1ª ou de 2ª, mais barata.
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
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