Cronicas Macaenses

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Macau: origem e significado de “Lán-Kuâi-Lâu”, explica Luís Gonzaga Gomes

Luís Gonzaga Gomes, no seu livro de 1952 – Curiosidades de Macau Antiga – editado pelo jornal “Notícias de Macau”, explica bem a origem e o significado de LÁN-KUÂI-LÂU, cuja região é também conhecida por “ferro velho” e que gostava de frequentar na minha juventude à procura de revistas e outras coisas.

Julgo que muitos desconhecem a sua história e esta postagem contribuirá para conhecermos melhor a nossa terra Macau.

Lan Kuai Lau - Travessa do Armazem Velho

Travessa do Armazém Velho (à direita) com a Rua da Tercena

Imagens de ruas do Google Maps / fotos de Rogério P.D. Luz

LÁN-KUÂI-LÂU

por Luís Gonzaga Gomes – uma visão de 1952

É o nome chinês da Travessa do Armazém Velho que fica situada entre a Rua da Tercena e a Travessa do Pagode, na altura em que esta é cortada pela Rua das Estalagens.

Com uma largura apenas de três a quatro metros é dificílima a sua travessia, não só pelas inumeráveis tendas de Bric-a-Brac e de cozinhas ambulantes que pejam ambos os lados da rua, como pelo enxamear dos seus transeuntes constituídos pela escória da população chinesa.

Apesar disso, esta Travessa é procurada pelos coleccionadores de raridades, que se aventuram a entrar nela com o fim de pesquisarem entre a imundice daquelas sórdidas tendas e lôbregas baiúcas, preciosidades dos reinados de Hóng-Hêi ou de K’in-Lông, quando não são ludibriados na aquisição dum reles bronze, que o vendedor ignaro, mas convincente, consegue, explorando a vaidosa presunção e a viciosa obsessão do comprador, impingir como raro e genuíno Tchâu, dinastia duas vezes milenária do período semi-histórico do império chinês.

Os que vão ter a esta Travessa, seguem geralmente a Avenida Almeida Ribeiro, em direcção aos Cais dos Vapores e cortam à direita pela Travessa da Cordoaria, a rua transversal precedente à de Cinco de Outubro.

Ora, para os que percebem chinês, a designação de Lán-Kuai-Lâu, soa estranho e sugestivo. Como lán significa quebrada ou arruinada; kuâi diabo e lâu andar ou casa, é natural que atribuam a origem do nome desta rua ao facto de ter nela existido, em tempos idos, alguma casa habitada por almas penadas, sendo por este motivo tal via denominada “rua da casa arruinada e endemoninhada”.

Enganam-se, porém, pois é outra a origem do nome chinês desta travessa.

Noutros tempos era reduzida a população desta cidade, que não conteria mais que umas escassas dezenas de milhar de pessoas. As casas eram poucas e, na sua totalidade, construídas de forma a que, vistas de lado, se pareciam com a letra kâm — oiro.

O mar chegava com certeza até à rua da Tercena, pois, esta palavra hoje em desuso significa “tulha à beira de um rio ou perto de um cais”. Este local era portanto pitoresco e a sua aquisição não poderia deixar de seduzir qualquer chinês rico que desejasse construir ali a sua residência.

Aconteceu, então, que nessa época, regressara de América, um dos primeiros emigrantes chineses de nome Ièong-Ièok-Im, natural da aldeia de Pâk-Sán, que, vizinha de Macau, faz parte da quinta circunscrição do distrito de Tchông-Sán.

Vinha rico e, no estrangeiro, educara o seu gosto estético tendo também aprendido a gozar das comodidades proporcionadas pela civilização européia.

Adquiriu, então, um terreno baldio nessa localidade, para construir a sua habitação em estilo   ocidental,   sendo   esta a primeira casa que ali surgiu, cuja  configuração lateral não aparentava o costumado formato da letra kâm.

A casa tinha dois andares e, no bairro chinês, foi também a primeira que apareceu com varandas. À imitação desta foram depois construídas outras casas no Beco da Rosa, sendo por este facto esta rua conhecida entre os chineses pelo nome de K’é-Lâu-Kái, isto é, a Rua das Varandas.

Como os chineses costumam referir-se aos estrangeiros com o depreciativo epíteto de kuâi significa “diabo”, e como aquela casa era a única em estilo europeu que aparecia naquele sítio, passaram os mesmos a designá-la com o nome de kuâi-lâu que, intrinsecamente, significaria “casa do diabo”, mas que, na realidade, significa simplesmente “casa estrangeira”, ou melhor “casa em estilo estrangeiro”.

lèong-lèok-Im, não residiu muito tempo nesta sua casa e, devido aos seus negócios, teve de voltar dentro de pouco tempo para a América. A casa foi, então, alugada a um Uóng-Máu que tinha regressado, recentemente, duma das Ilhas da Malásia. Uóng-Máu era homem de poucos escrúpulos e fazia a sua fortuna à custa das lágrimas e dos sofrimentos dos desventurados emigrantes, seus compatriotas. Estes eram tão duramente maltratados que os designavam pelo nome de tchü-tchái (porquinhos).

Uóng-Máu retinha os emigrantes em sua própria casa até ter a oportunidade de os poder embarcar para o seu destino. Por este facto, os chineses passaram a chamar, temporariamente, à casa de lèong-lèok-Im de tchü-tchâi-kún, isto é, depósito de porquinhos.

Num inverno, Uóng-Máu, conseguido, mediante acendrado zelo dos seus corretores, arrebanhar uns 30 aldeões que foram encarcerados nos húmidos e escuros gudões da sua casa, à espera de barco que os deveria transportar para Hongkong.

Uma noite, devido à demasiada abundância de lenha que se encontrava armazenada na cozinha do Colégio de S. Paulo, declarou-se uma violentíssima conflagração que, dentro de umas horas, destruiu quase por completo o admirável edifício que era o orgulho dos habitantes desta cidade.

Soprava nessa ocasião rijamente o vento norte e pelos ares, entoldados por densos novelos de fumo, voavam loucamente estilhas incendiadas, indo cair uma delas mesmo em cima da casa de lèong-Ièok-Im. Num instante, a sua bela mansão ficou completamente envolvida pelas chamas. Os pobres emigrantes que não puderam fugir, porque a porta principal estava bloqueada por línguas de ardentes chamas, deitaram-se uns das janelas abaixo, para virem despedaçar-se na rua, outros morreram carbonizados, inclusivamente o seu algoz Uóng-Máu.

Como os escombros desta horrível catástrofe ficaram abandonados durante bastante tempo, as pessoas que passavam por aquele sítio habituaram-se a designá-lo pelo nome de “Lán-Kuâi-Lâu, isto é “as ruínas da casa em estilo estrangeiro”.

Eis, pois, a origem e o significado em chinês do nome da Travessa do Armazém Velho.

Rua das Estalagens

Rua das Estalagens

Travessa da Cordoaria

Travessa da Cordoaria

Rua Cinco de Outubro

Rua Cinco de Outubro

Largo do Pagode

Largo do Pagode

Loja de antiguidades

Loja de antiguidades

Macau: edifícios avarandados

Macau: prédios avarandados

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

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O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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