Cronicas Macaenses

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‘Arquitectura Sacra em Macau’ artigo de Manuel da Silva Mendes em 1919, e prefácio de Graciete Batalha

Capa do livro - "Capa e Design: Paula Seabra"

Capa do livro – “Capa e Design: Paula Seabra”

Reproduzo aqui um artigo escrito por Manuel da Silva Mendes em 28/9/1919 para o jornal “O Macaense” – Arquitectura Sacra em Macau – extraído do livro “Macau Impressões e Recordações”, com tom bastante crítico da arquitectura dos templos existentes em Macau. O prefácio, também reproduzido, foi escrito por Graciete Batalha em 1979 para a Edição da Quinzena de Macau.

Prefácio do livro “Macau Impressões e Recordações” escrito por Graciete Batalha

com breve biografia de Manuel da Silva Mendes

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Manuel da Silva Mendes – imagem da Wikipedia

Contemporâneo de Camilo Pessanha em Macau, Manuel da Silva Mendes, prosador e poeta, não se guindou — nem o pretendeu — às alturas literárias do seu colega na advocacia e no professorado. No entanto, os seus artigos sobre Macau, cheios de vida e de interesse, são uma das fontes mais preciosas para o conhecimento do que foi a terra no seu tempo, ou seja no primeiro quartel deste século.

Silva Mendes não viveu, como parece ter vivido Camilo Pessanha, intelectualmente alheado do meio que o cercava. Mergulhando, com uma curiosidade — alerta e apaixonada, no mundo cheio de meandros do foro macaense, nos problemas do ensino e outros de natureza cultural, no estudo da religião, filosofia arte e tradições chinesas, publicou, em jornais e revistas da terra, impressões, relatos e narrações que a sua vivacidade de espirito e o seu sentido de humor tornam de leitura aliciante. Não que nos proporcione (e é pena) uma visão completa da sociedade em que se movimentava. Mas em pinceladas vivas, embora dispersas, dá-nos retalhos da vida portuguesa e chinesa numa época da qual muito passou e muito ficou.

Ao contrário de Luís Gonzaga Gomes que, sendo macaense, conheceu a terra de dentro aceitando-a e amando-a como ela é, Silva Mendes aportou a Macau armado da sua combatividade ocidental e decidido a endireitar o mundo — neste caso o pequeno burgo macaense que tinha certamente, como todos os burgos, muito a endireitar. Grande parte da sua colaboração na imprensa da terra são críticas contundentes à administração local ou sátiras a personagens de duvidosa santidade. Desse género poucos artigos reproduzimos nesta edição. Uns tratam de problemas hoje ultrapassados. Outros, segundo Luís Gomes, foram parcialmente destruídos, por razões pouco claras mas facilmente adivinháveis, na imprensa onde um amigo os mandou imprimir após a sua morte, restando apenas alguns textos truncados.

Para esta edição seleccionámos os artigos que nos pareceram mais representativos da Macau que Silva Mendes conheceu, e tanto amou apesar de tudo, e ao mesmo tempo da personalidade do Autor. Uma personalidade invulgar que atraiu muitos amigos e admiradores, e certamente outros tantos inimigos pois não era de molde a agradar a todos.

Alguns dos seus mais citados amigos eram chineses, coisa pouco usual em quem vem de fora e não conhece bem a língua. Um deles mandarim, governador da província de Kuang Tung, prefaciou os seus Excertos de filosofia Taoista, traduções livres em que prosa e verso se intercalam e que publicou um ano antes de morrer. Outros eram letrados e bonzos com quem discutia, ao que afirma nos seus artigos, sobre filosofia e religião chinesas.

Este foi um interesse constante durante a sua vida em Macau. Já em 1908 publicara um estudo com o título de Lao-Tze e a sua Doutrina segundo o Tao-Te-King. “O assunto do taoísmo prendeu muito a sua atenção” escreveu Luís Gomes, que foi seu aluno – “Silva Mendes não conheceu, porém, a obra de Láucio (Lao-Tze) senão através de traduções, visto que não sabia o chinês escrito e o seu conhecimento do chinês falado era muito restrito e superficial, motivo por que não é crível que tivesse sido capaz de conversar e discutir, em língua nativa, com homens de letras chinesas, sobre assunto tão transcendente”. (1)

Certo é que estudou algum chinês, como o próprio relata em Histórias de “Kuai”: “Estudava eu então chinês com o mestre Chan da repartição do Expediente Sínico, que vinha a minha casa dia sim, dia não; e no mesmo livro, no “Chin Tze Wen”, andava também um dos filhos da quarta concubina do Senhor Ó, que não teria mais de 7 anos…” Mas não terá continuado com a profundidade que só longos anos de aturada aprendizagem podem conseguir em tal língua. Portanto, ou os seus bonzos e letrados conheciam o português, o que é muito pouco provável atendendo aos costumes chineses, ou as “longas” conversas com eles se faziam através de intérpretes, ou a sua imaginação de narrador arredondava os factos…

A verdade, de qualquer modo, é que a sua frequência naquela espécie de cenáculo que era então o mosteiro budista de Choc Lam é confirmada por outras fontes. E desse convívio nos ficou, por Silva Mendes, o conhecimento de algumas cativantes personalidades chinesas, o que não é muito vulgar na literatura macaense.

. . . . . . . . . . . . . .

Manuel da Silva Mendes nasceu no distrito do Porto, em S. Miguel das Aves, a 30 de Novembro de 1876. (nota do editor: consta que foi em 1867 e não 1876-conforme a Wikipedia e o comentário feito nesta postagem)

Formado em Direito, veio para Macau em 1901 como professor do Liceu, em circunstâncias que ele mesmo narra, com imensa graça, no primeiro artigo desta edição. E aqui ensinou Português e Latim durante vinte e cinco anos, ocupando por vezes o lugar de Reitor. Ao mesmo tempo exercia a advocacia, tendo acumulado ainda outros cargos, como o de Presidente do Leal Senado e Administrador do concelho.

Viveu em Macau quase trinta anos. E de tal modo se afeiçoou à terra, que aqui acabou os seus dias. Gravemente doente em Portugal por volta de 1927, escrevia para os amigos cartas de que se conservam algumas cópias e em que a nota sempre repetida era o seu desejo, quase obsessão, de regressar a Macau.

“Meu caro A Ming (…) Quero ver se consigo partir para Macau em Setembro ou Outubro, mas tenho de arranjar uma pessoa para me acompanhar. Só com minha mulher é impossível…”— dizia em carta de Leiria de 27-6-26.

“… Eu estou com imenso desejo de voltar para Macau e logo que possa embarco. Ainda não sei quando poderá ser, mas logo possa andar alguma cousa, partirei. ” — escrevia do Porto, mais de um ano depois, em Novembro de 1927.

“… Logo que puder, vou para Macau” – repetia, ainda do Porto, ao seu amigo Soi Cheong.

Regressou realmente, mas pouco se gozou do regresso. Faleceu subitamente, com 55 anos apenas, em 30 de Dezembro de 1931. Segundo os jornais Eco Macaense e A Voz de Macau que na altura, comovidamente, se referiram ao seu falecimento, Silva Mendes continuava a trabalhar activamente, apesar de preso a uma cadeira de rodas. E muito havia ainda a esperar das suas excepcionais qualidades de advogado, de estudioso e de escritor.

Graciete Batalha / Macau, 1979

(1) Nova Colectânea de Artigos de Manual da Silva Mendes,  “Justifica­ção”, vol. I, pag. V.

(fotografia e arte digital/photos & digital art by Rogério P.D. Luz)

Ruínas da Igreja de São Paulo

Ruínas da Igreja de São Paulo

ARQUITECTURA SACRA EM MACAU

POR MANUEL DA SILVA MENDES – PUBLICADO EM “O MACAENSE” EM 28/9/1919

No Extremo-Oriente Macau foi um grande centro religioso nos séculos XVII e XVIII. Os mais notáveis pioneiros da evangelização na China aqui estacionaram: A. Valignani, Ruggieri, M. Ricci, M. Dias, Schall e tantos outros, cujos nomes passaram a história.

Também o primeiro propagandista do protestantismo na China, o célebre R. Morrison, começou nesta colónia a sua missão. Aqui baptizou ele em 1814 o primeiro chinês que adoptou a religião protestante. Com ele aqui jaz também seu filho, John Robert Morrison, o revisor, de colaboração com Medhurst, Fützlaff e Bridgman, nomes tão conhecidos, da versão da Bíblia feita para a língua chinesa por seu pai.

Missionários, padres, frades, freiras de várias procedências da Europa se juntaram em grande número em Macau. As primeiras freiras que aqui se estabeleceram, vieram de Manila e eram espanholas. Foram primeiramente albergar-se na ermida da Guia, donde passaram para o convento de Santa Clara, cujo risco um frade fez expressamente para moradia destas madres.

Macau encheu-se de conventos e de igrejas; fez-se uma pequena Roma nestas partes orientais. Quem nesses tempos vinha para a China, tinha de aportar em Macau; e ou aqui ficava, se somente à mercancia queria dar-se, ou daqui para o interior da China partia, se à obra da evangelização se destinava.

Era Macau também estação de estudo, de repouso e de refúgio.   Os jesuítas tinham para as letras o colégio de S. Paulo. Quando doentes ou depauperados, os missionários vinham refazer-se ou descansar nos conventos das suas ordens em Macau. Em tempos de perseguição era aqui que todos os estrangeiros se recolhiam.

Igreja e Seminário de São José

Igreja e Seminário de São José

Existem ainda hoje algumas casas das ordens religiosas desses tempos e quase todas as igrejas que anexas tinham. O convento dos franciscanos serve actualmente de quartel e a respectiva igreja foi demolida. O convento de Santo Agostinho, tendo servido de quartel ruiu haverá uns dezasseis anos; resta a igreja. Do de S. Domingos resta também só a igreja; a parte de residência foi ruindo pouco a pouco. Do de S. Paulo não resta nada; um incêndio destruiu-o e a igreja ruiu, ficando de pé apenas o frontispício. Existe ainda o convento de Santa Clara com a sua pequena igreja. Existe, finalmente, o Seminário de S. José e a sua igreja.

Afora estas igrejas dos conventos, há mais quatro igrejas paroquiais e duas antigas ermidas, havendo aquelas sido reparadas nos últimos tempos. Mas é curioso notar que, tirando S. Paulo, não há em todas estas  construções uma única coisa que, sob o ponto de vista estético, mereça cinco minutos de atenção. E tudo uma inestética vulgaridade.

A própria igreja de S. Paulo nunca foi acabada. As paredes ou muros laterais e a parte traseira foram construídos em terra batida, em uma espécie de adobo. A frontaria, toda em granito é, sem dúvida, majestosa; apesar disso, o risco peca muito pela mistura de estilos e pela heterogeneidade dos ornamentos. É digno de ver-se, contudo, o frontispício; e não há, antigo pelo menos, no Extremo-Oriente, segundo cremos, outro de mais grandiosidade.

Sé Catedral

Sé Catedral

Em Portugal, nos séculos XVII e XVIII, a arquitectura religiosa não se pode dizer que fosse arte muito florescente. Todavia há por lá desse tempo muitas construções de mérito artístico. Até nas aldeias se veem lá muitas que, embora de estilo de um período decadente, tem belezas, pelo menos nos ornamentos, muito interessantes.

As de Macau não têm nada que possa prender a atenção. Veja-se, por exemplo, o frontispício de igreja da Sé, todo ele em bom granito, relativamente bem lavrado; mas que chapada aquela, sem relevo, sem ornatos!… Quem desenharia essa obra?!

S. Domingos tem linhas que não desagradam; as colunas sobrepostas tem elegância; a simplicidade da frontaria prende um pouco a atenção. Mas veja-se a execução; veja-se o material: bases de granito, fuste e capiteis de tijolo e argamassa! … Dá vontade de mandar deitar tudo aquilo abaixo! E, para cúmulo, caiado tudo a azul e as portas borradas a verde!

Santo Agostinho, o Seminário, Santa Clara não são edifícios aos quais possa alguém levar um hóspede para vê-los. Não valem nada. Ah! falta-nos dizer que os frades tiveram ao menos bom gosto na escolha do local em que assentaram algumas destas construções. S. Paulo, o Seminário, Santa Clara ocupam belas posições. As escadarias que levam aos frontispícios são no seu lançamento belas; são dignas de serem conservadas. Pena é que o seu acabamento deixe a desejar e que o granito houvesse sido tão mal escolhido.

Residências paroquiais não há nenhuma digna de ser vista. Poderia esperar-se que numa ou noutra delas houvesse sido reproduzido o tipo simples das antigas casas portuguesas, como em algumas habitações particulares de Macau ainda hoje se vê. Mas não: fez-se tudo pelo pior; e, nos últimos tempos, quanto mais se lhes tem mexido, menos estéticas tem ficado.

A ponto vinha falar neste artigo também dos pagodes de Macau, e, quando o começamos a escrever, era intenção nossa não os omitir. Pra isso, fomos encurtando a matéria de modo a que eles aqui coubessem. Porém, agora, reconhecemos que não cabem, sob pena de alongarmos este artigo tanto, que ninguém o leia só com ver-lhe a extensão. Tem os pagodes arquitectura própria e, posto que destituídos de grandiosidade e de linhas pelas quais se imponham, abunda neles ornamentação muito para se ver e admirar. Ficarão os pagodes para outra vez.

Ermida da Penha

Ermida da Penha

2 comentários em “‘Arquitectura Sacra em Macau’ artigo de Manuel da Silva Mendes em 1919, e prefácio de Graciete Batalha

  1. Anjos Mendes
    12/09/2014

    o meu bisavô Manuel da Silva Mendes nasceu em 1967, conforme site da Wikipédia
    http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_da_Silva_Mendes
    https://www.facebook.com/pages/Manuel-da-Silva-Mendes/338627809514901
    Cumprimentos
    M. Anjos Mendes

    • Meus agradecimentos pela intervenção, Anjos Mendes. Consta observação a respeito do que foi reproduzido do livro.

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

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O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
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