DE PATANE A LILAU
Texto, fotos e legendas de Manuel V. Basílio (Macau)
A bica do Lilau desapareceu há várias décadas e a água que corre da actual fonte vem da rede pública e não da nascente do Lilau, por isso já não se pode dizer que “quem bebe água do Lilau não mais esquece Macau …”
Não se sabe ao certo o ano em que os portugueses desembarcaram pela primeira vez em Macau. Dos relatos que existem, sabe-se que mercadores portugueses, mesmo antes de 1557[1], já frequentavam estas paragens e o local preferido para servir de ancoradouro era uma baía, com um extenso areal, visto que aquele local dispunha de excelentes condições para servir de porto de abrigo, além de, ali próximo, correr água límpida e fresca de uma ribeira, a que mais tarde foi dado o nome de ribeira do Patane. Teria sido junto à ribeira e não muito distante de um morro[2], que ali existe, o local onde montaram as primeiras cabanas e, depois, quando ali se fixaram, surgiram então habitações mais estáveis. A partir dali e à medida que a população foi crescendo, novas habitações começaram a espalhar-se mais para o centro da península, quer no sopé da colina do Monte, quer junto de igrejas, edificadas por ordens religiosas, que entretanto para cá vieram. Com a construção da muralha norte, que praticamente dividiu a península em duas partes, a zona centro-norte ficou fora dos muros da cidade, e só décadas mais tarde, mediante permissão de residência, é que ali começaram a viver, em zonas baixas, alguns horticultores chineses, que gradualmente as converteram em zona rural.
Após várias décadas, com o aumento da população, a expansão urbana fez-se a partir do centro para o sul, tendo por isso, em 1618, sido construída, em direcção a sul, a igreja de S. Lourenço, em chunambo[3], em substituição da que existia em madeira. A actual configuração desta igreja data da primeira metade do século XIX, após subsequentes reconstruções.
Reprodução parcial de uma gravura (ca. 1840), em que se vê a Povoação do Mato da Penha, já extinta, assinalada com um círculo
Em 1622, foi construída uma ermida consagrada a Nossa Senhora da Penha de França, e cuja ermida veio a dar o nome de Penha à colina. Provavelmente foi por essa altura que fizeram o caminho pela encosta norte da Penha para facilitar o acesso à ermida. As vias públicas que existem nas encostas das colinas tiveram a sua origem, dum modo geral, nos trilhos que os utilizadores iam fazendo nas suas caminhadas, e que ao longo dos tempos se transformaram em caminhos mais largos e, finalmente, numa rua ou calçada.
O povoamento nas vertentes ou no sopé da colina da Penha só se verificou mais tarde, tendo surgido, de início, aqui e além, umas cabanas ou edificações precárias, devido à existência de valas de água na colina. Há registos que referem que, em finais do século XVIII, já havia uma pequena povoação numa das vertentes, que ficou conhecida por Povoação do Mato da Penha, habitada por chineses. Não vamos aqui mencionar os motivos que levaram à desocupação daquela povoação. O Cadastro das Vias Públicas da Cidade de Macau regista a extinção da Povoação do Mato da Penha (em chinês, 西 坑 村 , Sai Háng Chün, que significa Aldeia a Oeste das Valas de Águas), e estas valas de águas deram o nome, em chinês, à Rua da Penha ( 西 坑 街, Sai Háng Kái, ou seja, a Rua Oeste das Valas de Águas). A referida povoação situava entre o cimo da Calçada do Lilau e parte da Calçada da Penha e a ocidente desta povoação existiu um cemitério privativo de Arménios.
um dos bairros mais típicos da comunidade macaense …
Não são esclarecedoras quanto ao período em que começaram a construir casas de alvenaria à volta do local onde viria a ser um dos bairros mais típicos da comunidade macaense – o Bairro do Lilau. Cremos que teria sido em meados ou na segunda metade do século XVIII, sobretudo depois de o caminho junto à Casa das Dezasseis Coluna, localizada em frente à igreja de S. Lourenço, ter sido alargado e transformado em via pública, a que se deu o nome de Rua do Padre António, a qual se prolongou até a um largo, onde segundo a tradição existiu um poço, conhecido por chineses pelo nome “Á P’ó Cheng” ( 亞 婆 井, ou seja, Poço da Avó). A partir de então, começaram a construir cada vez mais prédios, passando a haver naquela zona uma maior concentração de habitantes, quer ao longo da Rua do Padre António, quer nas vias circundantes e, a pouco e pouco, o bairro do Lilau foi ganhando forma, tendo também extendido a via pública até à Barra, onde junto ao templo e nas imediações viviam sobretudo chineses que se dedicavam à faina marítima.
Relativamente ao Poço da Avó, existe uma versão em que se conta que, em tempos idos, havia uma velhinha muito bondosa, que vivia na encosta da colina junto de uma nascente de água potável e que ela, todos os dias, assistia ao sofrimento de pessoas, que viviam naquelas redondezas, a irem até ao sitio da nascente buscar água, transportando-a depois em dois baldes de madeira com uma pinga[4] ao ombro. Como era extremamente árdua a caminhada pela encosta, quer a subir, quer a descer, a velhinha, que tinha algumas posses, condoeu-se do sofrimento dos aguadeiros ou das pessoas que iam buscar água e, certo dia, mandou desviar uma corrente de água para uma cisterna ou poço que foi aberto, a expensas suas, num local mais abaixo. Assim durou o poço por muitos anos até que, em dada altura, o governo português resolveu mandar introduzir obras de melhoramento, de tal forma que o poço se transformou numa fonte, tendo nela colocado uma cabeça de dragão, a jorrar água pela boca. A partir de então, os chineses que viviam nas imediações passaram a chamar à fonte “Lông T’âu Cheng” ( 龍 頭 井 , isto é, poço com cabeça de dragão). É curioso verificar que a designação “Á P’ó Cheng” ( 亞 婆 井 ) aparece juntamente com os nomes das vias do Lilau (Rua, Calçada, Pátio e Largo), excepto Beco do Lilau, que em chinês é designado por Lông T’au Lei ( 龍 頭 里, isto é, Beco de Cabeça do Dragão). Com o decorrer dos anos, devido ao continuado uso, a cabeça de dragão sofreu grave desgaste e teve de ser substituída por um outro motivo decorativo, desta vez pela cara ou cabeça de um homem ( 人 頭 , Yân T’âu), passando a fonte, a partir de então, a ser designada por Yân T’âu Cheng ( 人 頭 井 ). Por conseguinte, o Poço da Avó teve, pelo menos, em chinês, as referidas três formas de designação, mas actualmente, para a nova geração, apenas subsiste a de Á P’ó Cheng ( 亞 婆 井), apesar de a fonte do Lilau ter já desaparecido há várias décadas, visto que desmoronou na madrugada de uma noite chuvosa e, após a ocorrência deste caso, não foi reconstruída.
O topónimo Largo do Lilau é recente …
O topónimo Largo do Lilau, em chinês, Á P’ó Cheng Chin Tei ( 亞 婆 井 前 地 ) é recente, pois esta designação só foi atribuida em 1995. Até então, o espaço do referido Largo era conhecido por Bica ou Fonte do Lilau, ou simplesmente, Lilau, em chinês, Yân T’âu Cheng ( 人 頭 井 ) e “por este nome é designada a pequena área da cidade, situada na vertente Norte da Colina da Penha, área esta que abrange a Rua, o Beco, o Pátio e a Calçada do Lilau”, como consta do Cadastro das Vias Públicas da Cidade de Macau, de 1957. O Largo, como dantes, continua sombreado com 3 árvores de pagode. A que está junto da Rua da Barra e a do meio são recentes, dado que as duas anteriores árvores foram derrubadas e substituídas pelas actuais. A velha árvore que existiu junto da dita Rua era referenciada por moradores chineses pela designação Yông Sü T’âu (Yông Sü, isto é, árvore de pagode, e T’âu, que significa, no contexto, a principal ou a primeira. No entanto, em sentido lato, podia significar todo o espaço do actual Largo). Junto da primeira árvore de pagode funcionou, durante muitos anos, uma tenda de café, com um toldo que se estendia até à árvore do meio, onde se podia comer umas torradas muito deliciosas, feitas num fogão a carvão. Em dada altura, havia duas tendas de café, funcionando a outra junto da última árvore. As duas tendas de café há muito que foram desmontadas e, presentemente, existe lá um quiosque, que nem sempre está aberto, visto que o Largo deixou de ser um ponto de encontro e de convívio.
No sítio onde está a menina de costas, junto aos prédios de cor ocre, é onde começa a Rua do Lilau. Foto M.V. Basílio
Afinal, qual é a origem do nome Lilau?
Conforme relatos existentes, a designação original era Nilau, mas com o uso deturparam este nome para Lilau. As palavras Nilau e Lilau não constam dos dicionários portugueses, nem têm qualquer significado no dialecto macaense. Nilau teria derivado da designação chinesa “nei lau” ( 瀰 “nei”, que significa transbordar) e ( 流 “lau” quer dizer fluxo ou corrente de água). Ouvimos esta designação “nei lau”, dita por um velho morador chinês, que vivia no início do Pátio do Lilau, quando em 1997, depois de subirmos até ao cimo da Calçada do Lilau, lhe perguntámos onde era a localização da nascente do Lilau. Mostrando-se muito amável, lá nos levou até um certo ponto da encosta, onde há uma casota, com porta, e ali nos explicou como sai a água da nascente. Indicou-nos que lá dentro há duas grandes rochas sobrepostas, escorrendo a água no sítio da junção. Explicou-nos ainda que “aquela água é subterrânea e por detrás das rochas existe um lençol de água, de onde transborda e sai por uma fresta daquelas duas rochas sobrepostas. Por este motivo chamam “nei lau” ( 瀰 流 ) à nascente”. Disse ainda que, “antigamente, a água escorria com mais abundância, mas agora há cada vez menos água, levando às vezes mais de um dia para encher o tanque dentro da casota. Mesmo assim, ainda há moradores que lá vão buscar água, que se apresenta límpida e fresca. Era esta nascente que alimentava a fonte que existiu no Largo”.
Há 3 árvores de pagode no Largo do Lilau. A que vemos é a mais antiga e as outras duas são recentes. Foto M.V. Basílio
O Largo do Lilau foi restaurado nos anos de 1994-95, tendo-se construído uma fonte moderna, que era uma enorme placa de pedra com duas bicas, colocada no canto direito do Largo e, juntamente com outros arranjos executados no Largo, fizeram uma caiação às casas envolventes, dando-lhes um aspecto novo, não faltando até, para assinalar esta beneficiação, uma cerimónia de inauguração, que se realizou em Janeiro de 1996.
. . .quase todas as casas do Lilau continuam desabitadas e algumas delas já em ruínas
Aquando da citada visita que fizemos à nascente do “nei lau”, acompanhado do referido morador chinês, fizemos um elogio por terem restaurado o Largo e as casas envolventes. Depois de ouvir as nossas palavras, aquele morador respondeu-nos simplesmente com o seguinte reparo, relativamente às casas caiadas de novo: “Só lhes deram uma camisa nova. Por dentro, continuam podres”. E tinha ele toda razão. Passados estes anos todos, quase todas as casas do Lilau continuam desabitadas e algumas delas já em ruínas ou ameaçando ruína. Apenas os prédios que estão ao fundo do Largo é que foram renovados posteriormente e estão agora a serem usados como loja ou galeria, com artigos variados, alguns de luxo, expostos à venda.
(passe o mouse/rato sobre as fotos e leia as legendas, e clique para aumentar)
as famílias macaenses que viveram em Lilau
Para que a memória não se apague, vamos aqui recordar algumas famílias que viveram no Lilau em meados do século passado, as quais incluem: (na Rua do Lilau) Maria de Brás Carmen; Belarmina Marques e irmã Angelina, esta casada com Fernando Albuquerque; Ismael Silva e Berta Passos; João e Isabel Trabuco; José Maria de Senna Fernandes (mais conhecido por Zé Conde); Carlos e Maria Castilho; José Maria Xavier de Siqueira e Isabel Maria Pópulo de Sousa Siqueira, pais de Mário, Ludgero e Zoé Siqueira; José e Florinda Lagariça; Domingos Dias; João Filipe do Sameiro Afonso Reis (mais conhecido por Johnny Reis); Maria Lurdes Costa Almeida; Maria Marques; a grande família de Machado Mendonça; José Martins Bruno; Hermenegildo da Luz; e, (na Calçada do Lilau) Carlos e Edite Nogueira (pais de Zaida, Valentim, Amaro, Inês, Maria Francisca e Olga); Cecília Gomes Joaquim (mãe de Cristina e Deolinda); José Augusto Cabral, em cuja casa, originalmente, viveu José Valentim Nogueira e, depois, Francisco Remédios; (ao fundo do Beco do Lilau) António Ferreira Batalha e António Maria Conceição; e, por fim, a família do Conde Bernardino de Senna Fernandes, com o seu vetusto prédio, a ostentar ainda o ano de construção: 1898. A enumeração das referidas famílias está, sem dúvida, incompleta, devido à mudança de inquilinos em determinadas alturas, podendo ser ainda actualizada, caso haja novas informações. Não estão aqui mencionadas as famílias que viveram nas vias circundantes, designadamente nas Ruas do Padre António, da Penha, da Barra, e na Travessa de António da Silva.
A fonte de duas bicas, feita aquando das obras de requalificação do Largo do Lilau, em 1994-1995. Esta fonte já não existe. (Foto baixada da internet)
… já não se pode dizer que “quem bebe água do Lilau não mais esquece Macau …”
Para ilustrar este artigo, fomos várias vezes a Lilau fazer fotografias. Todas as vezes que lá chegávamos, costumamos observar tudo em redor do Largo e, após uma breve pausa, sentíamos uma dor de alma por ver casas desabitadas, degradadas, sem calor humano, e mesmo sem vida. Por falta de adequado aproveitamento, as casas situadas entre o Beco do Lilau e a Calçada do Lilau estão em péssimo estado de conservação, umas já sem telhado e outras apresentam-se com portas e janelas apodrecidas, ou mesmo sem porta ou janela. As casas de cor ocre, da Rua do Lilau, estão vazias e fechadas. A bica do Lilau desapareceu há várias décadas e a água que corre da actual fonte vem da rede pública e não da nascente do Lilau, por isso já não se pode dizer que “quem bebe água do Lilau não mais esquece Macau …”. Lilau já perdeu todo aquele fulgor ou vitalidade que ainda existiu há pouco mais de meio século e actualmente está mesmo em estado de abandono. Fazemos votos que façam reviver Lilau e que dêem um aproveitamento condigno àqueles prédios, designadamente para fins culturais ou recreativos, porquanto este ponto turístico ainda faz parte integrante do Centro Histórico de Macau. (M.V. Basílio)
Notas:
[1] Oficialmente considerado como sendo o ano da fundação de Macau.
[2] Onde se situa actualmente o Jardim e a Gruta de Camões.
[3] Era uma mistura de barro, terra, areia, palha, conchas de ostras moídas, etc., num aglomerado que é compactado em camadas sucessivas, outrora empregue na construção de muralhas ou paredes.
[4] Vara de bambu (em cantonense: tám kón 擔桿) que serve para transportar ao ombro seja o que for, dentro de dois baldes ou cestos, pendurados em cada uma das extremidades da vara.
(Agradecimentos ao José Cabral Jr. e ao António Lagariça, ambos antigos moradores do Lilau, pelas informações prestadas relativamente às famílias que viveram naquele Bairro). M.V. Basílio
(passe o mouse/rato sobre as fotos e leia as legendas, e clique para aumentar)
Toda a faixa da via junto aos prédios de cor ocre faz parte da Rua do Lilau. O Largo do Lilau fica do lado esquerdo, a partir dos postes de candeeiros. Foto M.V. Basílio
Do lado direito, eram os prédios nºs. 1 e 3 (anterior numeração), da Rua do Lilau. Com a alteração para a numeração métrica, o nº 1 e o nº 3 passaram a ser, respectivamente, nº 7 e nº 9. Foto M.V. Basílio
A rampa que se vê é a continuação da Rua do Lilau. A ligação desta rua com a Rua da Penha é feita através de uma escadaria de pedra. Foto M.V. Basílio
Placa toponímica do Beco do Lilau, em chinês, Lông T’au Lei (龍頭里, Beco de Cabeça de Dragão) ou Lông T’au Hong (龍頭巷, Travessa de Cabeça de Dragão. Foto M.V. Basílio
A rampa do lado esquerdo é o Beco do Lilau. Do lado direito, onde se vê uma placa toponímica, junto a uma sinalização de trânsito, é a entrada da Calçada do Lilau. Foto M.V. Basílio
Em frente, é a Travessa de António da Silva. Do lado esquerdo, o primeiro prédio pintado de branco é a entrada para a Casa do Mandarim. Foto M.V. Basílio
Fim da Calçada do Lilau e início do Pátio do Lilau. No Pátio do Lilau só existem umas barracas. Foto M.V. Basílio
A localização da nascente do Lilau, que não abastece a fonte
Anterior placa toponímica do Pátio do Lilau, até ser substituída pela actual placa (reprodução de uma foto do autor, feita em 1997). Foto M.V. Basílio
Caminho aberto na encosta, por onde se vai à nascente do Lilau (reprodução de uma foto do autor, feita em 1997). Foto M.V. Basílio
Nascente do Lilau, no interior da casota que a protege (reprodução de uma foto do autor, feita em 1997). Foto M.V. Basílio
Porta da casota que protege a nascente do Lilau (reprodução de uma foto do autor, feita em 1997). Foto M.V. Basílio
Aspecto do Largo do Lilau, após as obras de requalificação executadas em 1994-1995. Nota-se que o pavimento e os canteiros já foram posteriormente substituídos, bem como a fonte de duas bicas. Foto M.V. Basílio
Pingback: Igreja de São Lourenço, o verdadeiro coração da cidade cristã em Macau | Cronicas Macaenses
É verdade Manuel. Eu até teria lido o relato sobre a área do Lilau, mas revendo os nomes dos residentes acho que no Beco do Lilau nº1, viveu também uma grande família, a família de Aureliano Gutierrez Jorge, que deixou uma enorme família; e no topo da Calçada do Lilau (a tal casinha com degraus de pedra), viveram também duas irmãs…Sara e Nini ambas solteiras. Eu era ainda um garoto de 6/7 anos de idade e recordo que a minha mãe me levava para visitar essas duas irmãs, acho que eram parentes dos Nogueiras e Cabral (tudo relacionado). Curioso.