PARSES EM MACAU
A presença dos parses em Macau é testemunhada precisamente por um cemitério – o Cemitério dos Parses, localizado na Estrada dos Parses.
Texto, fotografias e legendas de autoria de Manuel V. Basílio
Parses ou pársis (1) são descendentes dos zoroastristas (2) persas, que emigraram do seu país, a fim de fugir da perseguição religiosa, quando o seu país foi conquistado pelos árabes. Segundo a tradição, os parses foram estabelecer-se, primeiramente, em Ormuz, no Golfo Pérsico, e depois, porque a ameaça de perseguição persistia, em finais do século VIII emigraram progressivamente para a Índia. Fixaram-se sobretudo em Bombaim (agora, Mumbai) e em vilas ou povoações a sul de Bombaim. Ali, continuaram a manter o seu comércio com a Pérsia até quando encontraram melhores oportunidades de negócio na China, vindo então a estabelecer-se em Cantão e Macau. Os parses, apesar de não serem uma casta como os hindus, formavam uma comunidade distinta e bem identificada. Eram negociantes hábeis e dedicados, e nas primeiras relações comerciais que tiveram com empresas comerciais europeias, actuaram principalmente como intermediários na aquisição de têxteis. Foi sobretudo na era áurea do chamado “Canton Trade” que os parses se envolveram mais activamente como fornecedores de algodão e ópio, tendo vários deles sido parceiros de mercadores ingleses.
Retrato de Jamsetjee Jejeebhoy e, ao seu lado, o secretário chinês. Um quadro a óleo da autoria de George Chinnery.
O mais notável e abastado negociante parse
Vários parses se evidenciaram nas suas actividades nestas paragens do oriente, tendo-se notabilizado designadamente Jamsetjee Jejeebhoy (3). Nascido em Bombaim, ficou órfão de ambos os progenitores enquanto adolescente e, por isso, teve de começar a trabalhar ainda jovem. Consta que Jejeebhoy, antes de enveredar pela sua próspera carreira, foi empregado ou colaborador de Rogério de Faria, um luso-goês radicado em Bombaim, onde mantinha a sua base de negócios, sendo este considerado pioneiro no comércio de ópio na China, muito antes de os britânicos pensarem em entrar nesse ramo do comércio. Existe até uma referência de que Jejeebhoy fez a sua primeira viagem à China num navio pertencente a Rogério de Faria. Não foi decerto a sua primeira e última viagem, porquanto, subsequentemente, fez várias viagens a Cantão e, durante a sua estadia em Macau, conheceu o pintor inglês George Chinnery, que lhe fez um retrato a óleo, em que se apresentava trajado a rigor, com o secretário chinês ao seu lado.
Jejeebhoy, após adquirir a necessária experiência comercial, fundou em 1818, a sua empresa “Jamsetjee Jejeebhoy & Co.”. Devido à sua rigorosa integridade, indústria e pontualidade em todas as transacções comerciais, conseguiu acumular lucros suficientes para comprar o seu primeiro navio. As suas viagens à China resultaram em uma longa parceria comercial com William Jardine e James Matheson, com os quais manteve uma cooperação lucrativa e amigável, e cuja parceria foi fundamental para que Jardine e Matheson construíssem a sua poderosa empresa Jardine, Matheson & Co.
Como negociante, Jejeebhoy amealhou uma enorme fortuna que, segundo consta, excedia em muito a de William Jardine, tendo em vida sido também um grande filantropo, contribuindo com avultados donativos para obras de caridade. Pelos valiosos serviços prestados à Coroa Britânica, Jejeebhoy tornou-se, em 1842, o primeiro súbdito britânico na Índia a receber o título de cavaleiro e, em 1858, foi-lhe concedido um baronato, sendo estas as primeiras distinções conferidas pela Rainha Vitória a um natural da Índia. Sir Jamsetjee Jejeebhoy faleceu em Bombaim, a 14 de Abril de 1859, com a idade de 75 anos.
Negociantes parses em Macau
Existiu em Macau uma pequena comunidade parse, que aqui permaneceu praticamente até à fundação de Hong Kong, tendo-se mudado a partir de então para a novel colónia britânica e ali estabelecido os seus negócios. A presença dos parses em Macau é testemunhada precisamente por um cemitério – o Cemitério dos Parses (4), localizado na Estrada dos Parses, que começa na Estrada de S. Francisco, à entrada da Calçada do Visconde de S. Januário e termina em frente da Estrada do Engenheiro Trigo, entre a Calçada da Vitória e a Estrada de Cacilhas. Em 1822, os parses adquiriram um terreno para enterrar os seus amigos falecidos e o local escolhido foi a encosta de uma colina, a sul da fortaleza da Guia, mesmo voltado para leste, a fim de poder receber os primeiros raios do sol nascente. A sua construção ficou concluída em 1826, e o primeiro parse a ser ali sepultado foi Cursetjee Framjee, falecido em 1829. O local está disposto sob a forma de socalcos, num total de 5 patamares, ocupando quatro túmulos no 1º patamar, dez no 2º patamar e nos restantes patamares inferiores continuam livres. Em quase todos os túmulos estão sepultados jovens parses, que partiram das suas terras para uma aventura sem retorno. Além destes, estão também figuras importantes, designadamente aquele túmulo com um monumento dedicado a Pestonjee Cowasjee, que faleceu em 1842.
Existem três cemitérios dos parses nestas paragens do sul da China, sendo o de Macau o mais antigo. A seguir é o de Cantão (agora, em pinyin, Guangdong) e, por último, o de Hong Kong, em Happy Valley, datado de 1852, sendo este o único que continua activo e relativamente bem preservado. O cemitério zoroastrista de Huangpu (ou Whampoa, conforme romanização anterior, presentemente um dos distritos de Cantão) encontra-se localizado num terreno que tinha sido arrendado por cem anos, mas apenas esteve em uso desde 1847 até 1923 e, apesar de inactivo há quase um século, consta que já foi restaurado pelo governo chinês, mantendo-se, no entanto, o acesso reservado, pois apenas é permitido visitar o local mediante autorização. O de Macau, por se tratar de um cemitério privado, encontra-se permanentemente fechado ao público e sem a devida conservação, apesar de existir uma entidade gestora, sediada em Hong Kong, denominada “The Incorporated Trustees of the Zoroastrian Charity Funds of Hong Kong, Canton and Macau”, que deveria incumbir-se da manutenção e preservação. O Instituto Cultural de Macau, porém, já se encarregou de algumas obras, designadamente em 2007, quando um dos muros de retenção estava danificado e carecia de reparações urgentes.
Estrada e Cemitério dos Parses
A Estrada dos Parses, cuja designação em chinês é 白頭馬路 (em cantonense: “Pák T’âu Má Lou”, sendo “Pák T’âu” 白頭 , cabeça branca, e “Má Lou” 馬路 , estrada), pois os parses eram conhecidos pelos chineses por “Pák T’âu” (cabeça branca), porque usavam um tipo de gorro branco para cobrir a cabeça. No entanto, também eram designados, em chinês, por “Pá Si” ( 巴斯 ou 巴史 ) , cujos caracteres representam a transliteração de “parsi”.
A Estrada dos Parses era naqueles tempos um dos locais mais privilegiados da cidade, pela vista que desfrutava em seu redor, defronte ao mar, onde as ondas rolavam até ao sopé da colina. Foi junto a esta via que três distintas personalidades mandaram construir, no primeiro quartel do século XX, as suas residências ou palacetes: Dr. Manuel da Silva Mendes (5), Dr. Luís Gonzaga Nolasco da Silva (6) e Dr. Francisco Xavier Anacleto da Silva (7). No lado oposto, junto ao cemitério e próximo da curva em que termina a Estrada, encontra-se erigido um pavilhão chinês, designado por Ch’eók Kông T’êng ( 焯公亭 ), onde naqueles tempos podíamos ali encontrar, sobretudo pessoas idosas a jogar o xadrez chinês, ou simplesmente, a refrescar-se ou, então, a descansar e conversar com os seus habituais companheiros. Por ali, existia um acesso bastante utilizado para se chegar aos aterros do Porto Exterior, bastando descer por um sinuoso atalho aberto na encosta, próximo do qual existiam umas barracas habitadas, com cães acorrentados à porta e a ladrar assim que por lá passava um estranho e, ao fundo, um grande tanque, onde mulheres iam lavar roupas. Tudo isto já desapareceu. Actualmente, este acesso é feito por duas passagens, uma superior e outra inferior, estando aquela ligada a uma torre de elevadores, cujas obras foram executadas respectivamente em 2015 e 2016.
Devido a obras de nivelamento, realizadas no passado, a cota da estrada foi elevada, de forma que presentemente quase metade do portão da entrada está abaixo do nível da via. No lintel do portal, há uma placa de mármore branco, com inscrições em 4 línguas: guzerate, urdu, chinês e inglês, precisamente para designar CEMITÉRIO DOS PARSES.
Notas:
(1) Em inglês, Parsees ou Parsis
(2) Seguidores do profeta persa Zoroastro
(3) Jeejeebhoy ou Jeejebhoy, como aparecem por vezes escritos.
(4) O Cemitério dos Parses faz parte integrante dos Bens Imóveis Classificados do Património de Macau.
(5) O palacete de Silva Mendes, construído em 1905, tem a entrada pela Estrada do Engenheiro Trigo, que começa no fim da Estrada dos Parses. Presentemente está ali instalado o Instituto para Tecnologia de Programação da Universidade Internacional das Nações Unidas.
(6) Este edifício, designado por Casa Branca, foi construído entre 1916 e 1917, passando mais tarde a ser o Convento da Ordem do Precioso Sangue. Em 1998, o imóvel foi adquirido pela Autoridade Monetária de Macau, estando presentemente integrado no novo edifício, com entrada pela Calçada do Gaio, para servir de sede da referida instituição.
(7) O edifício, concluído em 1921, era originalmente designado por Vila Alegre. Agora faz parte da Escola Leng Nam, que foi ampliada com um novo edificio anexo, cuja entrada é feita pela Estrada do Visconde de S. Januário. A Escola, em inglês, é designada por Ling Nam Middle School, ou seja, Escola Secundária “Ling Nam”.
Localização da Estrada dos Parses
A Estrada dos Parses é apenas uma curva e contra-curva, vendo-se no topo da colina o Farol da Guia. Do lado direito, vê-se o portal do Cemitério dos Parses e a rampa, ao fundo, é a Estrada do Engenheiro Trigo. Foto Manuel V. Basílio
A placa toponímica do lado direito assinala o início da Estrada dos Parses. O edifício do lado esquerdo é o Centro Hospitalar Conde de S. Januário. Foto Manuel V. Basílio
Do lado direito, vê-se o portal do Cemitério dos Parses e, do lado esquerdo, o antigo palacete de Silva Mendes. Foto Manuel V. Basílio
O Cemitério dos Parses
Pormenor da parte superior do portal, com a indicação do ano de construção: 1829. Foto Manuel V. Basílio
Placa de mármore com inscrições em 4 línguas: guzerate, urdu, chinês e inglês, para designar CEMITÉRIO DOS PARSES. Foto Manuel V. Basílio
Devido à elevação da cota da via, presentemente quase metade do portão da entrada está abaixo do nível da Estrada. Foto Manuel V. Basílio
Cemitério dos Parses, visto da passagem superior para peões. Nesta foto vêem-se 5 patamares, dos quais apenas os dois primeiros existem sepulturas. O edifício no canto superior direito é o Hotel Guia. Foto Manuel V. Basílio
Apenas os dois primeiros patamares é que existem sepulturas: 4 no primeiro patamar e 10 no segundo. Foto Manuel V. Basílio
Do lado esquerdo, vê-se o pavilhão chinês “Ch’eók Kông T’êng, tendo o muro fechado a entrada que existia; a seguir, onde há várias árvores, é o local do Cemitério; e, do lado direito, vê-se um portal, que era a entrada para a Escola Leng Nam. Esta Escola já foi ampliada com a construção de um novo edifício anexo, cuja entrada é feita pela Estrada do Visconde de S. Januário). Foto Manuel V. Basílio
Torre de elevadores e acessos construídos (2015/2016) ao lado do Cemitério dos Parses
Subindo pela torre de elevadores e indo pela passagem superior para peões, chega-se a um patamar onde se avistam dois túneis: um, do lado esquerdo, que é uma passagem inferior e que vai ter à Calçada do Gaio; e, outro, do lado direito, que indo até ao fundo se pode subir, por outra torre de elevadores, a um troço da Estrada do Engenheiro Trigo, que circunda a meia encosta da Colina da Guia (vulgarmente conhecido por 33 curvas). Foto Manuel V. Basílio
Este túnel é a passagem inferior para peões, que comunica com a Calçada do Gaio. No lado direito, há também um outro túnel, que dá acesso a um troço da Estrada do Engenheiro Trigo. Foto Manuel V. Basílio
Túnel do lado direito, que comunica com um dos pontos da Estrada do Engenheiro Trigo, no troço da meia encosta que circunda a Colina da Guia (o troço das 33 curvas). O edifício que se vê do lado esquerdo, é uma outra torre de elevadores. Foto Manuel V. Basílio
A abertura do lado direito é o local de acesso à passagem inferior para peões, que vai ligar à torre de elevadores através de uma passagem superior, por onde se desce à zona dos aterros do Porto Exterior. Ao fundo, vê-se parcialmente o pavilhão chinês “Ch’eók Kông T’êng”. Foto Manuel V. Basílio
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
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