Cronicas Macaenses

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Macau: (02) Rua da Felicidade, uma visão em 1975

Nesta 2ª postagem sobre a Rua Felicidade, que pela receptividade da primeira publicação, é muito popular entre os macaenses, o nosso ilustre historiador Padre Manuel Teixeira no seu livro <Toponímia de Macau> editado em 1979, traz um relato bastante detalhado da vida da região de um articulista anónimo em 1975.  Algumas fotos que tirei em 1994, no meu retorno à terra natal pela primeira vez após tê-la deixado em 1967, complementam as imagens do ensaio fotográfico que fiz em 2007, parcialmente mostradas na postagem de ontem.

Rua da Felicidade provavelmente nos anos 70 (do próprio livro)

Rua da Felicidade provavelmente nos anos 70 (do próprio livro)

RUA DA FELICIDADE (II)

Um artigo de 1975 – do livro Toponímia de Macau de autoria de

Padre Manuel Teixeira

Um articulista anónimo publicou em 23 de Janeiro de 1975 o seguinte artigo sobre a Rua da Felicidade:

«Quem percorrer hoje a Rua da Felicidade, nada encontrará de singular. É presentemente uma rua meia-residencial e meia-comercial, pejada de casas de pasto e pouco mais. Mas quem evocar o seu passado, saberá logo que ela foi o coração do bairro de amor de Macau, fazendo parte do antigo Bazar, cujos restos são hoje incaracterísticos, desde que vias novas a rasgaram e os chineses se modificaram radicalmente, pelo menos, nos seus hábitos exteriores.

O Bazar era a retinta cidade chinesa de Macau, onde no dédalo das suas vielas, becos e calçadas, trepidava urna população ruidosa, azafamada, entregue a mil e um afazeres, tão diferente dos bairros em que viviam predominantemente os portugueses que formavam, nos tempos que já lá vão, a «cidade cristã», esta calma, sonolenta, como um burgo provinciano. Partindo da raia traçada pelos bairros do Lilau, S. Lourenço, Sto. Agostinho, Largo do Senado, Monte e Sto. Antônio, começava a «cidade chinesa» que ia desaguar, em leque, no Porto Interior. Todo o comércio ali se concentrava, acotovelando-se uma multidão, trabalhando de sol a sol, nas vielas mal cheirosas e pouco higiênicas que muito deprimiam quem chegasse, pela primeira vez, à Cidade do Nome de Deus e desembarcasse pelo rio.

Rua da Felicidade em 1994, antes da restauração

Rua da Felicidade em 1994, antes de ser restaurada

A sua população não era só constituída pelos autóctones de Macau. Havia gente oriunda das mais diversas parte da «terra-china» fronteiriça à cidade que ali chegava para os seus ócios e negócios. Macau abastecia todo o distrito de Heong San e era o escoadouro natural do mesmo e o Porto Interior monopolisava um largo movimento de transacções com o rico «hinterland». E não esqueçamos ainda de acrescentar que havia toda uma população flutuante e piscatória, ancorada no rio que punha pé em terra para os seus lazeres.

Havia de tudo no Bazar. Hospedarias e estalagens, ourivesarias e cambistas, casas de pasto, os chamados «fántims» e «cou-laus», algibebes e casas de penhor, lojas de quinquilharias e outras activi-dades as mais díspares, uma viela inteira de ferros-velhos, uma rua completa vendendo sedas e outros panos. No tutano daquela cidade, distinguiam-se as casas de fantan, com as suas fachadas típicas, as lojas de lotarias, os fumatórios, as «casas das flores» e outros lupanares de menor categoria.

O tráfico era principalmente feito por «rickshaws», carros puxados a tracção humana que lentamente substituíram as cadeirinhas. As ruas andavam abarrotadas de vendilhões ambulantes, com os seus nostálgicos pregões. Típicos também, os homens de ferros-velhos, os célebres tin-tins que devassavam as vias, batendo um ferrito no prato metálico, produzindo o som que lhe deu o nome.

Ora, cortando do alto da Rua da Alfândega até o velho restaurante Fat Siu Lau e prolongando-se até a Rua Cinco de Outubro, abria-se a Rua da Felicidade, com as suas genuínas casas chinesas, de tijolo cinzento e portas de espaldar, um friso em relevo, no alto da fachada, contando cenas de velhas lendas chinesas e com inscrições certamente alusivas à função da rua. Era ali o centro do bairro do amor que se espraiava depois por vielas e becos transversais, formando um conjunto destinado a um fim somente: o prazer.

Rua da Felicidade em Dezembro de 2007

Rua da Felicidade em Dezembro de 2007

A Rua da Felicidade era, em pleno dia, uma rua como qualquer outra do Bazar. As «casas das flores» tinham as janelas fechadas, porque se dormia a sono solto, depois da faina da véspera. No começo da tarde, ouviam-se o dedilhar dos instrumentos de corda das alunas que faziam o aprendizado de cantadeiras e o matraquear das pedras de «má-tcheok». Ao anoitecer, acendiam-se os lampeões, as casas apareciam, uma a uma, iluminadas. Era a hora em que as cantadeiras ou pei-pa-chais começavam a vestir-se, a «florear-se» de carmim, a perfumar-se. As mais exigentes demoravam-se horas neste ritual, rodeadas de «mui-tchais» e das aprendizes que mais tarde seriam futuras cantadeiras.

Noite fechada, as de menor fama desciam e ficavam à entrada, em grupos, muito pintadas, com flores e ornamentos nos penteados, trajando cabaias de cores berrantes, abanando-se e conversando garrulamente. Espreitavam, a cada passo e sem alarde, a rua, onde passavam potenciais clientes. As de maior fama, as consagradas, ficavam nos seus quartos ou jogavam o «má-tcheok» ou o «tin-kao», aguardando por mensagens que as convocariam para os «coulaus» e hospedarias e até para as casas particulares. Ou, então, recebiam os fregueses, nos seus próprios aposentos o que era uma concessão muito especial.

Nos tempos áureos do Bazar, não eram prostitutas vulgares. Não era de bom tom dormir com o freguês logo ao primeiro convite, porque isto era baratear-se ignominiosamente. Só depois de muitas sessões e bem esportuladas é que concediam tal favor. Ninguém as podia obrigar a proceder contrariamente, porque a sua função era a de cantar. Aprendiam com esmero, a gargantear, em falsete, longas canções de amor, lamentações de saudade e tristeza de separação, ao mesmo tempo que dedilhavam o alaúde ou tangiam o «piano de cordas», com duas hastes finíssimas de bambu.

O aprendizado não se limitava, porém, a cantar e a conhecer as mais subtis práticas de amor. Ia mais longe e a cantadeira aprendia a ser essencialmente feminina e discreta de maneiras e a conversar. Ensinavam-lhe versos, pensamentos confucianos, lendas do país, expressões de gentileza e meneios de olhos e de mãos, tudo isto para entreter e seduzir. Possuía, em suma, uma requintada educação na arte de agradar. Quando saíam, faziam-se acompanhar duma criada de meia-idade que levava o instrumento de cordas da profissão. Partiam de «rickshaws», quando iam para mais longe, ou caminhavam a pé, quando o lugar do destino ficava a dois passos. As pei-pa-chais da Rua da Felicidade, geralmente compradas de pequeninas a pais miseráveis e paupérrimos, eram escolhidas a dedo. Se em muitas a beleza do rosto não coincidia com os padrões da estética ocidental, eram certamente bonitas para o gosto chinês. Quanto mais rasgados e oblíquos os olhos, quanto mais salientes os malares, portanto, quanto mais oriental o rosto, maior o seu valor. Mas bonitas ou feias, segundo o ponto de vista europeu, todas eram delicadas e frágeis, rindo com modéstia, caminhando em andar estudado de passinhos curtos, meneando as mãos finas e bem tratadas e o resto do corpo, em ademanes sugestivamente eróticos. Possuíam um refinamento de maneiras que nunca envergonhavam quem estivesse em sua companhia, portando-se com uma dignidade que as tornou célebres.

A Mia posa ao lado da loja de Venda de Cobras na Rua da Felicidade em 1994

A Mia posa ao lado da loja de Venda de Cobras na Rua da Felicidade em 1994

Quem folhear as páginas dos escritores e jornalistas que fixaram as suas indeléveis impressões sobre Macau, verá que todos foram unânimes em prestarem homenagem ao encanto das pei-pa-chais.

É claro que toda esta aparência brilhante e enganadora, ocultava por detrás, muita tragédia, muito sofrimento e crueldade. A cantadeira, comprada na infância, era praticamente escrava da sua «patroa» que a explorava e lhe ficava com todos os ganhos, mesmo as dádivas dos fregueses. Se a pei-pa-chai não lograva alforriar-se nem tornar-se concubina de «china-rico», transformava-se numa criatura sem defesa, quando a sua juventude fenecia, porque não sabia singrar noutra profissão. Saía da Rua da Felicidade, devoradora de mulheres, para as vielas e becos transversais, sempre explorada. Era um mundo duro, ao fim e ao cabo. O suicídio não era, portanto, invulgar entre as cantadeiras».

Outra vista em 1994

Outra vista da rua em 1994.  A mulher lava a verdura para ser servida com o “prato de cobra” que também pode ser degustada na loja da foto anterior

Ah, em 1994, eu aí na foto com a Mia era 19 anos mais jovem.  Tinha passado pouco mais dos 40 anos. Bons tempos!

Ah, em 1994, eu aí na foto com a Mia era 19 anos mais jovem. Tinha passado pouco mais dos 40 anos. Bons tempos!

Outro aspecto da rua em 1994. Na foto,, a Mia e António Machado Mendonça hoje radicado no Rio de Janeiro.

Outro aspecto da rua em 1994. Na foto, a Mia e António Machado Mendonça hoje radicado no Rio de Janeiro.

 

Em 2007, loja que vende mil e uma coisas tinha uma tomada da panela elétrica de arroz de 1967 que tinha levado para o Brasil. Isto só em Macau mesmo!

Em 2007, loja que vende mil e uma coisas tinha uma conexão da panela elétrica de arroz de 1967 que tinha levado para o Brasil. Isto só em Macau mesmo!

Mesmo em 2007, os moradores não se intimidam em deixar secar vestuário íntimo na fachada

Mesmo em 2007, os moradores não se intimidam em deixar secar roupa íntima na fachada

Em 2007

Em 2007

2007

2007

2007

“… genuínas casas chinesas, de tijolo cinzento …”

2007

2007

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Autoria do blog-magazine

Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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