Cronicas Macaenses

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Macau: (01) Rua da Felicidade, um relato de 1924

Uma zona de meretrício, a Rua da Felicidade ainda tinha esta fama em 1967 quando deixei a minha terra natal, Macau, para emigrar para o Brasil. Mesmo com esta fama que hoje já não tem mais, existia lá e em funcionamento até hoje um excelente restaurante com boa comida macaense e portuguesa: Fat Siu Lau.

A rua e seus prédios que refletiam moradias da população pobre chinesa foram restauradas para que a rua se tornasse turística, conforme pude constatar nas minhas viagens de saudades a Macau a partir de 1993, não me lembrando bem a época. Em 2007, fiz um ensaio fotográfico da Rua da Felicidade que mostrou que a restauração feita precisava de outra reforma.  Até li no Jornal Tribuna de Macau que havia iniciativas neste sentido, porém não saberia dizer, do outro lado de mundo em relação a Macau, se já foram ou estão sendo realizadas, ou então, nada foi feito ainda.

O propósito desta postagem e de uma outra, a nº 02, é de trazer para vocês dois relatos sobre a rua.  Esta publicada em 1924 é do escritor espanhol Vicente Blasco Ibánez, após a sua passagem por Macau.  Outra, de autor desconhecido, em 1975, é mais completa e dramática, e será assunto da 2ª postagem sobre a rua.  Estes relatos foram extraídos do livro do Monsenhor Padre Manuel Teixeira, grande historiador de Macau já falecido: Toponímia de Macau. (Macau foi uma colônia portuguesa por cerca de 440 anos na China)

Rua da Felicidade do passado (dos postais de Macau Antigo publicados pelo Instituto Cultural de Macau)

Ontem: Rua da Felicidade do passado (dos postais de Macau Antigo publicados pelo Instituto Cultural de Macau)

Rua da Felicidade em Dezembro de 2007

Hoje: Rua da Felicidade em Dezembro de 2007

(fotografias de/photos by Rogério P.D. Luz – todas de Dezembro de 2007)

RUA DA FELICIDADE (01)

Segundo Vicente Blasco Ibánez, 1924 – do livro Toponímia de Macau de autoria de

Padre Manuel Teixeira

Vicente Blasco Ibañez

Vicente Blasco Ibañez (Wikipedia)

O escritor espanhol Vicente Blasco Ibánez tem um capítulo sobre a sua visita a Macau em La Vuelta al Mundo de um novelista (Tomo II, Prometeo, Germanias, 33 Valencia, 1924, pp. 176-196). Escreve ele acerca da Rua da Felicidade: «Esta Rua da Felicidade é pelo seu tráfico semelhante às que existem em todos os portos de mar, mas aqui oferece o interesse de serem unicamente chineses os que a frequentam, impelidos pelo estímulo da lascívia. Compõe-se de casas estreitas, cujo piso baixo é ocupado inteiramente pela porta. Através da sua abertura vê-se uma espécie de vestíbulo com o renque da escada que conduz às habitações superiores, e alguns assentos chineses, ocupados pelas donas e suas amigas. São mulheres de cabeça volumosa, membros delgados e tronco grosso, com um nariz tão achatado que apenas se torna visível quando mostram de perfil o seu largo rosto, amarelo como a cera. Estas fêmeas maduras, retiradas das pelejas sexuais, fumam grossos cigarros enquanto conversam lentamente. Outras penteiam-se entre elas à luz duma lâmpada colocada diante dos seus ídolos predilectos.

As pensionistas das ditas casas jogam no meio da rua como um colégio em férias. É, na verdade, a função que lhes corresponde, jogar pelos seus poucos anos. Todas elas são chinitas apenas entradas na puberdade. Perseguem-se como gatas travessas, soltando gritinhos de regozijo. Algumas acercam-se de nós depois de colocar uma máscara de aspecto monstruoso, uma máscara espantosa de dragão ou de gênio, como unicamente sabem imaginar os artistas chineses e as probrezinhas rugem para nos infundir pavor, rindo após a sua travessura.

Fixamo-nos nos diversos altares das casas. Todos eles ostentam num painel imagens de papel, doiradas e multicores: deuses ou deusas das Águas, do Vento, da Felicidade, etc. Nalgumas dessas vivendas as hóspedes não têm dinheiro para adquirir divindades protectoras, mas nem por isso carecem de altar. Colocaram na parede, sob dosseis de cores, um anúncio da Companhia Transatlântica Japonesa, com um vapor de quatro chaminés e um mar de grandes ondas, e acendem-lhe todas as noites uma lâmpada, tal qual como nas casas vizinhas. Tais improvizações não espantam nenhum chinês.

Tornamos a atravessar a grande rua de Macau, que reveste nas primeiras horas da noite um aspecto de capital de província. Passeiam pelos seus passeios numerosos sacerdotes e oficiais vestidos à paisana; jovens duma elegância marcial, com grande chapéu de feltro à mosqueteiro e casaco branco.

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O Governador Rodrigues obsequia-nos com uma magnífica refeição no seu palácio. Admiro os salões desta residência, que não é velha, mas começa a adquirir o encanto do antigo. Muitos dos seus móveis vieram de Cantão e têm mais dum século. Nos cantos há grandes ânforas de porcelana multicor, como as fabricavam os chinas noutros tempos».

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Restaurante Fat Siu Lau que serve boa comida macaense e portuguesa

Restaurante Fat Siu Lau que serve boa comida macaense e portuguesa

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Rua da Felicidade, a sua localização e a denominação em chinês inclusive dos arredores (do mesmo livro e do Cadastro de Vias Públicas de Macau de 1957): Começa na Rua da Alfândega, entre os prédios n.os 39 e 41, e termina na Rua da Caldeira, entre as Travessas do Matadouro e do Auto Novo. Em chinês tem o nome de Fok Long San Kai, isto é, «Rua Nova da Felicidade Abundante».

Travessa da Felicidade (em chinês Fôk Lông Sân Hong, ou mais conhecido por I Ón Kái) — Começa na R. da Felicidade, em frente da Travessa do Mastro, e termina na Travessa do Bazar Novo, entre os prédios nºs 15 e 17. (No Cadastro das Vias Públicas de 1957 constava que tinha o Hotel Tông Fón no nº 11)

Beco da Felicidade (Fôk Veng Lei) — Começa na Rua da Felicidade, tendo a entrada entre os prédios n.os 23 e 27 desta rua e termina no Pátio da Felicidade, entre os prédios nºs 22 e 26 deste pátio.

Pátio da Felicidade (Fôk Lông Vâi, ou Ch’êng Vó Lei, ou Sát Ná Kái)— Começa próximo do termo da Travessa do Bazar Novo (na rectaguarda do Cine-Teatro Cheng Peng), e termina na Rua da Felicidade, entre os prédios nºs.  55 e 59.

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Habitações de uma rua transversal da Rua da Felicidade

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Estreitas vielas laterais da Rua da Felicidade

Mapa de Macau de 1927, do livro 100 Anos que Mudaram Macau do Governo de Macau 1995 (clicar para aumentar)

Mapa de Macau de 1927, do livro “100 Anos que Mudaram Macau” do Governo de Macau 1995 (clicar para aumentar)

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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