Esta postagem traz a entrevista que o “Adé” – José dos Santos Ferreira concedeu ao “Zéca” da Gazeta Macaense, em 02/03/1983 a respeito do hockey de Macau dos tempos antigos, especialmente dos anos 30 e 40. E, para complementar, as fotos da época publicadas em jornais de Hong Kong, bem como, dois artigos em inglês de jogos disputados entre os macaenses e ingleses.
O material faz parte do acervo do saudoso Rigoberto do Rosário, várias vezes citado, pai do “Api” autor da canção Macau, a quem agradeço pela cessão dos recortes de jornal para digitalização.
JOSÉ DOS SANTOS FERREIRA
GAZETA MACAENSE 02/03/1983 – POR “ZÉCA”
Encontrar o Zé dos Santos Ferreira não é difícil. Bastou combinarmos um encontro num ambiente tranquilo e com aquela gentileza que é peculiar na sua pessoa não foi difícil entrevistá-lo para a Gazeta. Assim demos início:
(Zeca) – Desde quando e como iniciou a sua carreira no Hóquei Clube de Macau?
(José Santos Ferreira): Quando era miúdo tinha eu os meus 12 ou 13 anos — todas as tardes em que havia treinos de hóquei no campo de Tap Siac, lá estava eu, com outros rapazes da minha idade, pouco mais ou menos, entretidos a ver como os crescidos jogavam. Andava sempre munido dum «stick» velho, quase da minha altura, que me dera o meu irmão. O saudoso tenente Felipe O’Costa gostava de nos ver interessados pelo hóquei e, habitualmente, dava-nos uma bola usada para nos entretermos atrás da baliza.
Não minto se disser que, de quando em quando, O’Costa lançava uma olhadela para os nossos lados para ver qual dos miúdos tinha mais jeito.
Um ano depois, lá para 1932, sempre que qualquer dos crescidos faltava ao treino, era com a maior satisfação que ouvíamos a voz de O’Costa a dizer: «Entra tu, miúdo! E tu também!»
Claro, nós, os hoquistas de palmo e meio, estávamos lá sempre, atentos à chamada. A paciência e a carolice do «Pai» do nosso hóquei foram de tal ordem que até o levaram a formar uma equipa feminina e outra de miúdos, pondo-as a jogar uma contra a outra em certas tardes.
Em 1934, com 15 anos, fiz a minha estreia no 2º. «team». Dois anos depois, ingressei na equipa de honra, mas só em 1937 é que joguei o meu primeiro «Interport» contra Hong Kong. Creio ter chorado de alegria quando, pela primeira vez, enverguei a camisola de Macau com a Cruz de Cristo ao peito.
—É natural a satisfação de fazer parte do célebre grupo treinado pelo tenente O’Costa, não é verdade? Qual a sua opinião sobre o aludido treinador? Com ele aprendeu algo?
Em toda a minha vida, conheci dois grandes mestres, ambos excepcionais e amigos da rapaziada, qual deles mais sabedor, mais dedicado â causa de instrução e preparação da juventude para a vida. Foram eles o professor Fernando de Lara Reis e o tenente Felipe Augusto O’Costa, ambos de saudosa memória. Lara Reis foi meu professor de desenho e trabalhos manuais no Liceu. Poderião acreditar, mas é verdade: com ele aprendi muito; não apenas as disciplinas que ministrava, como ainda uma infinidade de trabalhos de secretaria, inclusivamente escrever à máquina. (Estávamos na Direcção da Associação Escolar do Liceu, ele presidente e eu secretário). Aprendi também a fazer relatos para jornais, organizar festas, concursos literários, torneios, etc. E outra coisa ainda, bem mais importante: colocar sempre, em todos os actos da nossa vida, a honestidade acima de tudo. Com O’Costa não só aprendi o hóquei, mas também atletismo. Mais: o desportivismo, indispensável a qualquer desportista que se preza, o espírito de «fair-play», o saber ganhar e perder; aprendi como e quando devemos reconhecer o mérito dos nossos adversários; a respeitar todos quantos estão connosco na pugna: companheiros da equipa, adversários, dirigentes, árbitros e o público. Está a ver quanto todos nós não aprendemos com esse Homem extraordinário. O que tiver a sorte de aprender com esses dois mestres inesquecíveis foi bagagem suficiente que me permitiu organizar vários torneios e campeonatos de atletismo, hóquei, futebol, natação, etc.
—Qual a posição que melhor se adaptava ao seu jogo no hóquei?
Foi a de defesa-direito. A meu lado estava Armando Basto, o «stone-wall» como lhe chamava a Imprensa de Hong Kong, um dos grandes de todos os tempos do Hóquei Clube de Macau. A propósito, li,não há muito tempo, uma resenha histórica do hóquei macaense, em que foram citados nomes de muitos que fizeram a glória do nosso maior desporto, sem que o nome de Armando Basto tivesse sido mencionado. Fiquei triste.
—Recorda-se, Santos Ferreira, como veterano e entusiasta de hóquei, de algumas tardes de glórias para o Hóquei Clube de Macau?
Naqueles tempos, todas as tardes eram de glória para o H.C.M. Basta recordar a série inumerável de vitórias que a nossa equipa averbou de 1930 a 1941 e a proeza que registou no período pós-conflagração do Pacífico, durante uns dez anos consecutivos, em que não perdeu meia dúzia de jogos em cerca de duas centenas que disputou.
—Para si, na sua época de jogador, qual foi a vitória de Macau que melhor lhe soube?
A vitória de Macau que melhor me soube foi, talvez, a que conseguimos frente à fortíssima selecção do Exército de Hong Kong, se não estou em erro, em 1949.
O jogo, largamente anunciado na Imprensa e Rádio, foi disputado em Hong Kong, tendo um dos jornais da vizinha colónia vaticinado que Macau iria apanhar uma tosa. O «Army» tinha-se mantido invencível naquela época; a sua formação contava com sete jogadores então recentemente chegados da índia, onde haviam feito parte de diferentes selecções, entre eles o temível Gardner e seus companheiros Daniels, Peters e McKenzie. Pois, naquela tarde de feliz inspiração, saímos vitoriosos da pugna pela margem de 4 a 1.
Gardner, o melhor avançado-centro que Hong Kong conheceu até hoje, pisou o nosso semi–circuto não mais que três vezes em todo o jogo. Foi numa destas investidas que logrou marcar o único tento do «Army». Macau havia jogado com a seguinte formação: César Capitulé, Armando Basto e eu; Humberto Rodrigues, José Vítor do Rosário e Herculano da Rocha; Albertino de Almeida, Augusto Jorge, Lourenço Ritchie, Fernando Marques e Frederico Nolasco.
—E aborrecimentos? Teve alguns?
Que me lembre, não houve aborrecimentos que não pudessem depressa ser esquecidos. É que as tardes alegres de boa prática desportiva e os momentos de satisfação eram tantos que os pequenos aborrecimentos eram facilmente dissipados.
—No período da última conflagração mundial, em que Macau foi o retiro de muitos jogadores de Hong Kong, ainda se realizaram algumas competições? Tomou parte em algumas delas? O Hóquei Clube sempre venceu?
Muitas competições se realizaram em Macau nesse período. Disputaram-se vários torneios e campeonatos entre equipas de estudantes, juniores, seniores e femininas. Até foram disputados «Interports» não-oficiais entre Macau e Hong Kong.
Dos campeonatos, o Hóquei Clube apurou-se sempre vencedor. Participei praticamente em todas as provas de seniores, como jogador e como árbitro, e fui treinador de uma das cinco equipas femininas que então existiam.
—Na sua opinião qual foi o melhor jogador de Macau? Ou melhor, qual o jogador que mais o impressionou?
É difícil dizer-se quem foi o melhor de entre tantos que eram indiscutivelmente bons, cada um na sua especialidade, cada um dentro do seu estilo e maneira de actuar. Os que mais me impressionaram? Também foram tantos…
Dos antigos, eu citaria César Capitulé (Almada) o melhor guarda-redes que Macau conheceu; os defesas Jacinto Rodrigues e Manuel Cardoso, magníficos na sua época; os avançados Fernando Ramalho, Henrique Manhão, Pedrinho Ângelo e o cadete inglês Pedriot; o meu irmão João, médio-esquerdo, enquanto O’Costa jogava, e depois médio-central, e Laertes da Costa, jogador para qualquer das posições. Da chamada segunda «ninhada», eu distinguiria Alexandre Airosa, Frederico Nolasco, Amílcar Ângelo e Rui Hugo do Rosário, todos brilhantes. Depois, já no meu tempo, diria ser Armando Basto, os irmãos Rigoberto e José Vítor Rosário e os avançados Albertino de Almeida, Augusto Jorge, Lourenço Ritchie e Fernando Marques os melhores. Mais tarde vieram os irmãos Amadeu e Frederico Cordeiro, ambos com muita categoria. De entre os da nova geração, eu distinguiria o defesa António de Sousa e o avançado Eduardo de Jesus Jr., jogadores com grande habilidade, que se fariam extraordinários se tivessem um treinador da categoria do tenente O’Costa.
—É claro que também gostaria de saber qual a equipa adversária que mais o impressionou e a razão. Lembra-se de alguns jogadores adversários fora de série ?
Equipa adversária que mais me impressionou: possivelmente a do Exército de Hong Kong (1948-1950), equipa homogénea, de jogo rapidíssimo e agressivo, com elementos óptimos em toda a sua linha. Jogadores adversários fora de sério houve, para mim, dois: Willie Reed, o grande médio-central do Clube de Recreio e várias vezes da selecção de Hong Kong, jogador sóbrio, impressionantemente calmo e seguro e excelente desportista, e Gardner, o temível avançado-centro militar, exímio nos «dribblings» e fintas, muito rápido e sempre oportuno.
– Quando é que deixou de jogar?
Em 1960 ou pouco antes. Quando, em meados dos anos 50, notei que nos treinos me começava a faltar genica para marcar Albertino Almeida e Augusto Jorge, aí compreendi que me tinha chegado á altura de dar o lugar a outrem. Como capitão da equipa que era nessa altura, «despromovi-me» a mim mesmo, baixando à 2a. categoria, e proporcionei, assim, o ingresso de Amadeu Cordeiro —um jovem cheio de habilidade— na equipa de honra. Na 2ª.divisão ainda joguei uns 5 ou 6 anos.
– Sabemos que depois de deixar de jogar, ainda foi dirigente desportivo. Pode-nos dizer algo sobre isso?
Fui dirigente desportivo mesmo enquanto jogava o hóquei. Fui secretário do H.C.M. durante alguns anos, desde a sua fundação oficial em 1941. Fiz parte também da Direcção da Associação de Futebol de Macau, do Grupo Desportivo Argonauta, do Conselho de Desportos e de várias comissões organizadoras de torneios e campeonatos de atletismo (masculinos e femininos, futebol, natação, ténis-de-mesa, etc. Mais tarde, tendo já deixado o hóquei definitivamente, exerci funções directivas no Ténis Civil e mais recentemente no Conselho de Educação Física. Tive sempre muito gosto em dar o meu contributo para o desenvolvimento do desporto da minha terra querida.
—Além de praticante e dirigente desportivo, Santos Ferreira também chegou a escrever para os jornais. E verdade?
É verdade. O jornalismo sempre me entusiasmou. Fiz a minha estreia no periódico «Tio Tareco», quando ainda caloiro no Liceu. Passei depois a escrever para «Desporto» e «Noticias de Macau». Colaborei na revista «Educação Física» e no jornal «Renascimento» e, extintos estes, ingressei em «O Clarim», primeiro como redactor desportivo e depois como chefe da redacção. Em 1962 fui convidado para chefe de redacção do diário «Comunidade», que teve apenas sete meses de vida. Há coisas de 10 anos atrás, ajudei Leonel Borralho a fundar a «Gazeta Macaense», onde trabalhei cerca de um ano.
Fui também, naqueles tempos, correspondente em Macau do «China Mail», de Hong Kong, e dos periódicos metropolitanos «Jornal do Norte», «Diário de Notícias», «Diário Popular» e «Volante».
—Actualmente, o que pensa sobre o Hóquei e do Desporto em Macau? Sente haver qualquer progresso ou qualquer coisa que não está a engrenar bem?
Duma maneira geral, todas as modalidades desportivas que se praticam em Macau padecem do mesmo mal: muita procura de recompensa material e pouca dedicação á causa do desporto. Os atletas da actualidade parece que enveredaram, quase todos, para o campo, não digo de profissionalismo completo, mas pelo menos de semi-profissionalismo. Nada se faz sem ajuda financeira, sem qualquer benefício em troca. Ora, o desporto deve ser encarado como um meio e não como um fim. Progresso, não se nota por enquanto. Talvez apareça num futuro próximo, a avaliar pelos esforços que estão a ser despendidos e pelas actividades cada vez mais incrementadas pelas entidades oficiais responsáveis, apoiadas pela decisão inabalável de tornar materializados planos relativos á implantação de novos recintos desportivos — campos e pavilhões. O hóquei, esse, anda muito em baixo. Não faço ideia do que possa estar a engrenar mal.
—Foi, no sábado passado, condecorado pelo Governo com a Medalha de Mérito Desportivo. Está satisfeito em ter sido lembrado?
Pergunta se estou satisfeito? Eu antes queria responder que fiquei muito sensibilizado e estou grato. Satisfação implica a obtenção de algo ambicionado. Não é, com certeza, o meu caso. Estou, sim, muito grato por se terem lembrado de mim, embora da elevada distinção não me julgue merecedor. Com efeito, quem há em Macau que tenha feito o bastante em prol do desporto para vir a merecer tão significativa condecoração? Depois de tudo que todos, juntos, fizemos, ainda tanto ficou por fazer.
Cumprimos o nosso dever? É certo. Mas não é o cumprimento do dever uma «obrigação, depois de se ter aceite o cargo para que se foi nomeado ou eleito? Sei que a atribuição da Medalha de Mérito Desportivo é também um estímulo. E gosto de ver os da nova geração entusiasmados e estimulados, para que trabalhem a sério e se dediquem de alma e coração ao desenvolvimento do nosso desporto.
– Encontrámo-lo de perfeita saúde e com aspecto juvenil. É claro que deve praticar ainda o ténis. Ou deixou já o desporto de vez?
Deixar o desporto de vez? Talvez só na sepultura. . . Ainda dou umas pancadas com a raqueta e com o taco de bilhar. Quando não chove, vou pela manhãzinha a Hac Sá onde corro bastante, respirando os excelentes ares que aquela magnífica zona nos oferece. Alguém da «Gazeta Macaense» quer fazer uma corrida ou jogar dois «sets» de ténis comigo?
*****
Estivemos na inauguração do complexo Gimno desportivo de Mong Há. Vimos o Zé Santos Ferreira (conhecido, pelos amigos do seu tempo, pelo Adé) a ser condecorado. Ora pensamos que, com esta entrevista, todos saberão quem se trata o entrevistado que bem mereceu o galardão concedido pelo Governo. Quanto a nós foi um acto de justiça. Queremos, apenas, informá-lo que Armando Basto não está esquecido por nós e o tempo dirá. (Zéca)
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
Hoje, 24 de Junho de 2022, comemora-se 400 anos de “A Maior Derrota dos Holandeses no Oriente” na sua tentativa de tomar Macau dos portugueses. Até a transição de soberania de Macau, de Portugal para a República Popular da China, em 20 de Dezembro de 1999, a data era comemorada como “DIA DE MACAU” ou “DIA DA […]
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Recordações muito interessantes e nostálgicas. Apesar de eu ser bastante + novo, recordo-me perfeitamente dos irmãos Rosários – Hugo, Rigoberto, José – os Nolasco, Basto, o Almada, o Airosa. Eram grandes hoquistas e bem mereciam lugares + honrosos, no mundo do desporto, Mas enfim, provaram a sua capacidade de grandes atletas do seu tempo. Belos recortes dos velhos jornais da época.