Cronicas Macaenses

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Macau em duas crónicas de Afonso Correia, em 1951

“Macau, Terra Nossa – Solar de Portugal no Oriente” é um livro de autoria de Afonso Correia, publicado em Macau pela Imprensa Nacional em 1951.  Do livro extraí duas crónicas que nos faz viajar por esta Macau provinciana e de vida simples, que dá tantas saudades.

A Gazeta Macaense de 23 de Setembro de 1987 faz uma referência do autor na sua participação no livro “Cheong Sam” (“A Cabaia”) de Deolinda da Conceição: “a primeira edição, datada de 1956, foi feita em Lisboa pela Livraria Francisco Franco, com prefácio de Afonso Correia (esse escritor que amou Macau) …”

Macau 1950 - vista da Colina da Penha

Macau 1950

1ª CRÓNICA DE APRESENTAÇÃO DO LIVRO

INSCRIÇÃO DO PÓRTICO

Este livro é bem teu, Macau.

Induziram-me a escrevê-lo os encantos das tuas feições. Quero dedicar-to, devotadamente, como um alegre presente de aniversário.

Uma grande parte foi escrita, em horas incertas, atravessando momentos em que a desdita, fruto de inexorável doença, me rondava a porta e já quando, volvida a tormenta, bebia o travo duma reparação dos tecidos orgânicos, quase impossível. Arquitectei-o, entretanto, com o espírito em teimoso desanuveamento, rendido à tua fronte auriverde, bafejado pelos estímulos da tua compostura, do teu busto de Rainha do Orien­te, dos teus enlevos que são o triunfo duma vida de labor e sofrimentos contados, dia a dia, como um rosário de amarguras nascentes da tua fatalidade geográfica. Os seus materiais de contextura são formados por crónicas ligeiras, feitas de observações ocasionais, mas tocadas de sentimentos amistosos e devotivos.

Sei bem que pouco valem estas crónicas.

Deves recebê-las com franca tolerância e não ver nelas senão uma sinceridade amiga e uma admiração convicta.

Estima-as. Cumprirás assim um imperativo de consciência bem formada e de gratidão bem nutrida pela ventura que nelas te é desejada.

De entre as inúmeras crónicas que tenho publicado, em toda a minha vida jornalística, nenhuma guardei, nenhuma guardo, porque entendo deverem ser volantes os nossos escritos, como as palavras.

Se o vento e a fatalidade os leva, já não nos pertencem, em contrariedade do conceito latino — verba volant, scripta manent.

Porém, uns amigos e camaradas da imprensa daqui e de Lisboa incitaram-me a coligir algumas, no livro que agora consagro ao teu exame. Seria impossível dar satisfação a essas vontades, tão cativantes para mim, se um bem estudado método de arrumação me não facilitasse o trabalho com a demanda e o encontro dos exemplares do jornal, onde as crónicas vieram a lume. Aqui lhes deixo o meu reconhecimento profundo.

A ti, Macau, antes de pôr fim a esta pobre inscrição, quero dizer-te mais algumas palavras de amizade:

Nasceste, promissora e feliz, sob o ideal protector, próprio necessariamente de quem crê, da Santíssima Trindade. “Santo Nome de Deus”  é o teu lema dignificador e eternizante. Não sei porque nem como, mas descobri, na tua vida, no teu ser, nos teus segredos, no teu clima nacional e internacional, no teu poder e no teu inconfundível posto de província portuguesa, bem portuguesa, uma, influência decisiva do número três para os teus destinos, em paralelo débil e longínquo com a já por mim invocada de ti e para ti Santíssima, Trindade.

Vê e considera o quadro que te confio, expresso nas seguintes pala­vras, que julgo dignas de atenção:

Em Macau são faladas três línguas — a portuguesa, a chinesa e a inglesa. A cidade é dominada por três colinas mestras — a da Guia, a do Monte e a da Penha. Apresenta três colégios de considerável frequência — Santa Rosa de Lima, Sagrado Coração de Jesus e S. José. Possui três hospitais, a saber:  Conde de S. Januário, S. Rafael e Keang-Vu. E servida por três templos de capital importância — o da Sé, o de Sto. Antônio e o de S. Lourenço, que, por sua vez, dão os nomes às três freguesias existentes na cidade. Possui três grandes e predominantes artérias de trânsito constante —Avenida Almeida Ribeiro, Avenida da República e Avenida Marginal. Oferta aos budistas chineses três pagodes principais – o da Barra, Mong-Há e Bazar. Segue constantemente três rumos — Norte, Oriente e Ocidente.  Alimenta, decisivamente, três civilizações — a portuguesa, a chinesa e a anglo-saxónica. Ostenta três imponentes arranha-céus — o Central, o Kuok Chai e o Oriental. Segue três religiões — a cristã, a protestante e a budista.

Dispõe de três territórios distintos, como capital da província que e, — o da península, o da ilha da Taipa e o da ilha de Coloane. Enamora-se de três cores fundamentais — a verde, a encarnada e a amarela. Mostra três jardins públicos ou publicitados — o de S. Francisco, o de Camões e o de Vasco da Gama; três estátuas, embora a última não figure ainda em lugar público — a de Ferreira do Amaral, a do Coronel Vicente Mesquita e a do Conde de Sena Fernandes; três cinemas, de melhor frequência — Capitol, Apolo e Vitória; três padroeiras a que todos os crentes rendem particular devoção — Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora de Lurdes e Nossa Senhora de Fátima. Observa três mundos distintos — o oriental, o ocidental e o austral. Dispõe de três meios de transporte — o automóvel, o riquechó e a bicicleta; três climas — o frio, o moderado e o quente. Aborrecem-na três barreiras —o mar, a China e as ilhas. Apresenta, como figuras predominantes do seu meio social e económico, três capitalistas chineses — Fu Tak Iam, Kou Ho Neng e Ho Yin. Conta três fases, na sua existência histórica — a construtiva, a expansiva e a evolutiva e segue à risca, no geral, as três grandes virtudes teologais — Fé, Esperança e Caridade.

Se nos abalançássemos a pesquisas mais prolongadas, talvez o quadro oferecesse maior extensão.

Os números estão certos e faço votos por que eles, de algum modo, tenham provindo dos ditames protectores e beneficentes da Trindade em que tanto confias e que sempre tem guiado e amparado os teus passos, conforme é tua crença firme.

Não durmas, porém, confiando exclusivamente nesses ditames mesmo que eles, de certeza, sejam oriundos do Poder Supremo, invencível para os crentes.

Continua a remar sobre a maré das tuas fagueiras e nobres intenções, não esquecendo que vives rodeada pela inconstância, pelo desatino e até por signos de indesejável preponderância.

A tua felicidade será a de todos nós, portugueses, filhos e não filhos desta amada terra a que não posso oferecer mais nada, além da modéstia deste livro.

Aqui o tens,

Afonso Correia.

Macau 1950 - Colina da Penha

Macau 1950 – Colina da Penha

CRÓNICA – OS PÉS E A CABEÇA DA CIDADE

Quis dar a esta crónica o título seguinte:

A cidade sem serras. Desisti do intento, não só porque é dura e áspera, muito áspera, a frase,  – e eu detesto as palavras atribuladoras da pronúncia e do ouvido—mas ainda porque desejei evitar o malsinante, todavia possível, qualificativo de plagiador do Eça.

No entretanto, posso e devo dar-lhe começo, para a finalidade que tenho em mira, dizendo que a velha Macau é uma cidade sem serras, sem terras e, a dilatar a rima, sem guerras. Eis uma circunstância que todos sentem e vêem, mas que se torna conveniente fixar, para deduzirmos, em volta dela, considerações que não julgo desca­bidas, ao menos por estes dias correntes da nossa existência.

Uma grande cidade que não tenha serras a ladear-lhe o torso é como um doce pomar sem árvores mestras a tornear-lhe a essência ou uma extensa vinha, no colo dum outeiro, sem grossas penedias a enfrentar-lhe a imagem e a ricochetear-lhe o Sol vivificador.

Esta urbs de Macau não ostenta serras alterosas a que possa confiar o bafo dos seus segredos. Para além do seu limite continental, montanhas cruas e despidas, onde o calor bate em cheio e as névoas se alongam como véus de imprescrutável mistério, oferecem chagas de barro esmaecido, carreiros onde a alma se despenha e os olhos vagueiam como loucos, procurando a luz e o horizonte que não encontram. Essas montanhas só não definem um pesadelo, porque são parapeitos de todos os nossos sonhos patrióticos e das nossas visionárias ilusões. Para a cidade não representam mais que uma superfície polida, sem o espelho onde logremos reflectir a sua imagem cariciosa e tépida.

Entretanto, nas cercanias e nos próprios seios desta cidade, erguem-se colinas, que deslumbram as almas, com a sua frescura, com as ramarias quietas e meigas das suas encostas, com as flâmulas de ostentosos edifícios, em seus topos, que são as medalhas duma constante afeição do homem à terra e da correspondência solícita da terra aos devaneios do homem. Poucas cidades da nossa Pátria oferecem às gentes uma topografia tão lampejante de surpresas aliciadoras. Deponhamos as sete ou já hoje catorze colinas da vetusta Lisboa, os miradoiros cândidos e doces da Coimbra que faz versos no próprio murmúrio das suas folhagens, os ninhos de pedras que embalsamam e rendam a costa da Caparica, o Capitólio granítico de Sintra, com a Pena em riste sobre o mundo, tapetada de arvoredos densos e cambraiada de nuvens, e muito mais que o tempo e o espaço nos não deixam apontar, fica-nos Macau, ajoelhada aos pés das suas colinas e a caminhar, em procissão, pelas estradas meigas que as espiralam até às soberbas cristas donde o Oriente é medido e fruído. A cidade está, pois, compensada da falta daquelas serras que o Eça imaginou, nos arredores de Lisboa.

As terras que Macau não possui são aqueles que dão frutos, que dão vida, o crescimento e sazonação às searas, que se rasgam para dar nascimento aos regatos, cursos aos rios e aos ribeiros, conchego aos lagos, eternidade às fontes. Mas possui terrenos, embora muito limitados, onde o homem ergueu florões de prédios e, à beira destes, na cidade moderna, rosas de enervante inspiração natural, arbustos de enlanguescente colorido, dentro dos prédios e nas ruas largas e estreitas, nos seus jardinzitos pincelados de ternura, uma clareira de roseirais humanos, muito vivos, em boa ordem crescente e em quase imperceptível ordem decrescente, que poderiam servir de ornamento sonhado a qualquer linda cidade de terra em festa.

Na beira dos terrenos urbanos, há umas nervuras de terras em promessa de minúscula cultura vegetativa, onde parece o homem nem querer tocar, para não lhe alterar as formas ou profanar a essência promissora.

Uns pecadinhos de Tântalo, porque os suplícios a que este foi condenado não fazem parte das existências de Macau, a não ser no todo respeitante ao desbotamento, pelo tactear, dos mais límpidos e fascinantes roseirais humanos.

Dissemos e confirmamos que Macau é uma cidade sem guerras, e assim é, não apenas daquelas que põem os homens, em exércitos, frente a frente, alvejando-se e devorando-se, com a utilização de engenhos mortíferos, mas até dos motins insignificantes, que não ultrapassam o cunho das desordens e ficam sepultados, para sempre, em correntes casos policiais.

Macau é uma cidade com magnífico tronco bem modelado e colo intensamente colorido, mas, principalmente, com pés e cabeça. Se arriscássemos aqui a tão usada, para tantas terras ocupadas por desvariadas gentes, estafadíssima frase “sem pés nem cabeça”, praticaríamos uma injustiça cruel de que nem o próprio céu, com todo o seu cortejo de benevolências e perdões, conseguiria absolver-nos. Os pés de Macau, os estilizados e bem medidos pés, em cujos dedos a cidade se finca para beber o Sol da amplidão da vida, são esses inúmeros prédios em renque, nas orlas das artérias e de toda a tradicional rede vascular, do seu movimento humano, velhos telhados, mas que representam coberturas de sacrários de sonhos, “arranha-céus”, impertigados, que são caldeirões a abarrotar de caldos de cultura para a esverdinhada concupiscência de almas sem dor.

A cabeça da civitas, ei-la que se alteia, prende e domina, do topo do ramalhete das suas colinas, onde as cabeleiras são fartas, no verde irisado dos seus caracóis, na “permanente” eléctrica das suas cofiadas ondulações. Da larga moleirinha ou dos cocurutos dessa cabeça divisam-se os horizontes mais doces, os mais ternos encrespamentos da marítima superfície líquida, doirados e batidos pelos raios solares, que a inspiração humana poderia desejar.

Podes orgulhar-te,  ó briosa e fresca rosinha de Macau, de haveres nascido e recebido os primeiros afagos da vida, numa encantadora cidade, por ventura a jóia mais rara do Oriente, engastada no carinho e no amor do ocidente português.

Macau 1950

Macau 1950

Macau 50.02

Arco festivo na Av. Almeida Ribeiro em 1950

Arco festivo na Av. Almeida Ribeiro em 1950

Hospital Kiang Wu em 1956

Hospital Kiang Wu em 1956

Missa campal nas Ruínas de São Paulo em 1950

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Autoria do blog-magazine

Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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