O TARRAFEIRO
do livro “Curiosidades de Macau Antiga” de autoria de Luís Gonzaga Gomes, editado por “Notícias de Macau” em 1952
É o nome por que se costuma designar a parte da cidade situada no sopé que foi dum morro, no alto do qual hoje se encontra a igreja de Santo António.
Há menos de cem anos, ainda não tinha sido conquistada ao mar toda aquela faixa que actualmente se encontra repleta de casas de comércio, e a construção da magnífica avenida marginal, para a qual desembocam todas as ruas interiores deste bairro, data meramente de há uns poucos de anos.
Em épocas remotas, todo esse terreno que vai do Largo de Sto. António até ao Jardim da Gruta de Camões serviu de cemitério aos chineses e as lodosas águas do delta chegavam a molhar a extremidade da actual Calçada do Botelho.
Ora, era ali, nessa praia, que se concentravam os “tán-ká” barcos-habitações, formando colmeias humanas que se entregavam à labuta das coisas do mar. A pesca dos camarões por meio de tarrafas, era o principal modo de vida desta população fluvial constituída por aborígenes da China meridional.
Foi devido ao facto de se encontrar nesse sítio somente indivíduos que exerciam este mister, que proveio o nome de Tarrafeiro àquele local.
A causa que levou depois os tancares a mudarem o seu poiso para a Praia do Manduco, hoje aterrada e semeada de casas de negócio, foi motivada por uma tremenda rixa, que há uns sessenta anos se tanto, se travou entre os tancareiros e os maltrapilhos que, então, abundavam na cidade.
Vivia, nessa ocasião, um tancareiro chamado Tchè-Kâm-Fu, que, após anos de trabalhos e privações, conseguira realizar uma pequena economia, tendo-a ciosamente escondida no seu barco.
Aconteceu que tal facto tivesse chegado aos ouvidos de certos malandrins, que, daí em diante, não deixaram de espiar os movimentos do pobre Tchè-Kâm-Fu.
Certa noite, os meliantes tiveram ensejo de se poderem aproveitar duma ausência fortuita de Tchè-Kâm-Fu para conseguirem entrar no seu “tân-ká” sem serem pressentidos. Ao cabo de algum tempo, encontraram o tesouro, sem terem de vasculhar muito. Apossaram-se, então, dele e fugiram.
No dia seguinte, quando Tchè-Kâm-Fu deu pelo roubo, tratou, primeiramente, de ver se descobria o ladrão, entre as pessoas que com ele conviviam no seu tancar.
Como lhe não repugnasse acreditar nos protestos de inocência de todos, resolveu ir a terra, a fim de ver se descobria o ladrão.
Procurou, então, a corja de vadios que pululavam nesse tempo pelas lúgubres alfurjas daquelas imediações, e interpelou-os de sobrecenho ameaçador, acerca do roubo de que fora vítima, na noite anterior. Claro é que todos aparentaram ingénua ignorância e, para o confundirem, riram-se dele, chamando-lhe lorpa.
Tchè-Kâm-Fu teimava, porém, em descobrir o ladrão no meio deles e a malandragem, para se ver livre do importuno que ousara lançar-lhe em rosto tão insidiosa suspeita, alegou, então, que ele estava armando-se em honesto com o fim de inculpar pessoas inocentes de um roubo por ele mesmo perpetrado. Agarraram-no, por isso, amarraram-Ihe os pés e as mãos, dependuraram-no no suporte dum candieiro da Rua dos Colonos, e sovaram-no sem dó nem piedade. Depois disso, abandonaram-no, e, no dia seguinte, a ardência dum inclemente sol de verão encarregou-se de extinguir os últimos alentos do infortunado Tchè-Kâm-Fu.
Ora, mal sabiam os maltrapilhos, culposos daquele execrando crime, que era membro do clan de Tchè um ferrabrás, chefe duma famigerada quadrilha de tunantes aquartelada em Honkong.
Este, ao ter conhecimento da morte infamante do seu consanguíneo, veio imediatamente a Macau, acompanhado de alguns dos seus mais esforçados sequazes, e vádio que encontrassem pelas vielas era imediatamente posto de molho.
Apanhados assim de surpreza, muitas foram as vítimas do ódio daquele justo desforço.
Nesse tempo, os sórdidos antros dos gatunos e vádios chineses estavam situados na Barra, na Horta da Mitra e no Patane, sendo os deste último bairro os que eram tidos por mais aguerridos. Assim, os maltrapilhos sovados pelo grupo de Hongkong, correram imediatamente a relatar o acontecido aos seus apaniguados e, em menos de meio dia, conseguiram os mesmos concentrar não pequeno, número de homens, entre os quais se contavam alguns célebres mestres de “ponto sorte” (luta chinesa).
O grupo de Macau não se precipitou e, certo da vitória, resolveu convidar, por escrito, o grupo inimigo para uma refrega formal.
Fixadas as condições do insólito prélio, apresentaram-se os combatentes na praia do Tarrafeiro, em dia previamente combinado.
As forças estavam bem equilibradas, e, por entre enorme algarreio de aclamações soltadas pelos entusiastas de ambos os partidos, os contendores defrontaram-se, um contra um, por sistema de eliminatórias, tal como tinha sido previamente ajustado.
Nos primeiros encontros, ambas as partes respeitaram as combinações estipuladas. Porém, como este torneio já durava dias sem se chegar a nenhuma decisão, a pancadaria acabou por se generalizar, e os combatentes passaram a recorrer-se de armas para liquidarem aquela briga que ameaçava não ter fim.
Malharam-se, ao princípio, mutuamente, com paus e bambus mas, daí a pouco fuzilaram nos ares achas e açacalados chuços. Houve cabeças rachadas, membros partidos e a arena encharcou-se de sangue golfado das feridas. Já se contavam alguns casos fatais e, como os embates prometiam aumentar de gravidade, o grupo adverso, na impossibilidade de receber reforços, foi obrigado a bater em retirada e, à sorrelfa, para Hongkong.
Os brigões de Macau não se atreveram por sua vez a passar para a colónia vizinha, a fim, de prosseguirem a luta, preferindo deixar-se ficar, prudentemente, em terreno conhecido, para aguardarem o provável regresso dos seus contendores.
Porém, dias depois, a quadrilha de Hongkong, a fim de concertar a paz, enviou um mestre de “ponto sorte” a Macau, como seu emissário, o qual era muito considerado e respeitado pelos rixosos desta terra, visto terem muitos deles sido seus discípulos.
Ficou, então, resolvido que a quadrilha de Hongkong deveria obsequiar os seus adversários com um lauto banquete no Tarrafeiro, mesmo no local onde foi dirimido tão porfiado pleito.
O grupo de Hongkong, para terminar aquela fútil contenção, anuiu de bom grado a tal imposição. Assim, daí a dias, realizou-se, naquele campo de honra, grande bródio, confraternizando-se os maltrapilhos das duas colónias vizinhas e, em pequenas mesas dispersas pela praia, reconciliaram-se os malavindos, que comiam à tripa forra, esquecendo agravos e rezingas.
Desde esta data em diante os tancareiros nunca mais se atreveram a amarrar as suas embarcações naquela praia que, de resto, pouco a pouco, foi sendo aterrada, em virtude das urgentes necessidades exigidas pelo florescente comércio que se centralizou naquela localidade,
O facto de ali ter sido praia é hoje recordado só no nome com o qual os chineses costumam designar esta localidade — Sá-Lán-Tchâi — que significa “pequena cerca de areia.”
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
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