Cronicas Macaenses

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O Exército Chinês no fim do século 19

Artigo de Alfredo Dias, publicado na Revista Macau de Outubro de 1998, dá uma visão genérica da situação do exército chinês no fim do século 19. Veja:

Cena no arsenal de Nanquim. Foto de John Thomson (ca. 1870) publicada em llustrations of China and its people. (Arquivo Livros do Oriente)

Cena no arsenal de Nanquim. Foto de John Thomson (ca. 1870) publicada em llustrations of China and its people. (Arquivo Livros do Oriente)

SOBRE O EXÉRCITO CHINÊS

artigo de Alfredo Dias – Revista Macau edição de Outubro de 1998

No volume II da Ta-Ssi-Yang-Kuo (TSYK), João Feliciano Marques Pereira insere um curioso artigo intitulado “O Exército Chinês” onde pretende apresentar a realidade militar do Celeste Império nos anos de viragem para o século XX. Para isso recorre aos escritos de dois franceses, E. Bard e E. Bujac, com duas perspectivas diferentes, mas que permitiram traçar o retrato do exército do Império: um que rapidamente nos dá, sob uma forma impressionista, o que pode observar de perto enquanto residiu na China; o outro, que é um escritor militar e que, sob o ponto de vista técnico, nos descreve o que seja esse estranho exército…

Soldado manchu. Foto de John Thomson (ca. 1870) publicada em llustrations of China and its people. (Arquivo Livros do Oriente)

Soldado manchu. Foto de John Thomson (ca. 1870) publicada em llustrations of China and its people. (Arquivo Livros do Oriente)

O valor do exército chinês

Depois de uma breve introdução, à qual voltaremos mais tarde, os textos apresentados por João Feliciano Marques Pereira esboçam, em poucas linhas, algumas características gerais do exército chinês, começando logo com a frase: No actual momento (1898) nenhum valor tem o chamado exército chinês. Estava assim dado o mote para um texto pouco elogioso para as tropas do Celeste Império, particularmente em relação àqueles que as comandavam, pois como se acabava por reconhecer, quando são bem comandados, regularmente pagos e tratados, pode-se fazer dos chineses excelentes soldados. Podemos hoje nós afirmar que, quanto a este particular, não se distinguiam muito dos restantes exércitos do mundo.

Descreve-se depois a forma como os soldados chineses se comportavam, recorrendo por vezes à pilhagem para garantirem o soldo que, de quando em quando, os seus oficiais decidiam chamar a si. Os uniformes pouco adequados aos quais se adicionava um rabicho gerador de incómodos e doenças. Sem mochila nem utensílios para acampar, o soldado chinês transportava um guarda-chuva que, uma vez aberto, se transformava num excelente alvo para o inimigo, a par com o dístico branco que adornava o seu fardamento, no peito e nas costas, onde se inscrevia o nome do regimento. Também o calçado que utilizava é comentado neste artigo, como pouco adequado à função para que havia sido destinado, entre o sapato de sola de feltro, que se desfazia com o mínimo aguaceiro, e a bota não justa e de pregos enormes. Por outro lado, a cavalaria também não era poupada nas apreciações francesas, apelidada de cúmulo da miséria. Tudo isto não obstante o facto de se considerar o soldado chinês bravo além de todo o limite e sustenta-se até à última extremidade.

Arqueiro manchu. Foto de John Thomson (ca. 1870) publicada em llustrations of China and its people. (Arquivo Livros do Oriente)

Arqueiro manchu. Foto de John Thomson (ca. 1870) publicada em llustrations of China and its people. (Arquivo Livros do Oriente)

Organização militar

O exército chinês era formado pelo exército imperial, Pa-K’i (Exército dos Oito Estandartes), recrutado por entre manchus, mongóis e chineses do norte que também colaboraram no derrube da Dinastia Ming em meados de setecentos; pela Guarda Imperial, corpo de três a quatro mil homens escolhidos entre as Oito Bandeiras; pela Tropa de Guerra de Pequim, criada em 1862 e formada por cerca de 20.000 homens distribuídos pelas armas de cavalaria, artilharia e infantaria.

Encontramos depois as tropas chinesas, constituídas pelos exércitos provinciais designados por lu-ying (Exército do Estandarte Verde), compostas por forças de terra e de mar e fazendo simultaneamente serviço de guarnição e de polícia e, ainda, pelas tropas mercenárias (lieun-kiun). As tropas do Estandarde Verde estavam, por sua vez, organizadas em tropas de campanha (chen-ping), com soldados exercitados, e milícias sedentárias com soldados incumbidos da guarda das praças (cheu-ping). Quanto aos lieun-kiun ou lieun-ping, eram simples militares inscritos nos registos comunais que, distinguindo-se na repressão à revolta Taiping, foram conservados posteriormente pelos governadores a troco de casernas, alimentação, vestuário e de um bom soldo.

Exercito chines Taiping (03)

Revolta de Taiping

Quanto à marinha, os autores franceses citados por João Marques Pereira eram suficientemente claros nas suas opiniões:

Não existe já a marinha chinesa depois da guerra japonesa. Foi tomada e destruída em Uei-ha-uei e Porto-Arthur, quase sem combate. Seria facílimo o recrutamento de marinheiros num país em que uma enorme população vive da pesca e possui qualidades náuticas muito sérias. Floresciam os mais graves abusos na marinha chinesa. No momento da guerra, as guarnições estavam incompletas, o material  quase inavegável, e nulos os abastecimentos.

Quando não eram os comandantes dos que trapaceavam, encarregavam-se disso os mandarins civis.

Para concluir esta breve síntese da situação do exército chinês apresentada por Marques Pereira, via E. Bard e E. Bujac, não resistimos a apresentar o seu comentário às afirmações avançadas por aqueles autores franceses quando estes passaram a dirigir as suas críticas à oficialidade chinesa. Adiantavam estes que, para os chineses, um homem que cursou quaisquer estudos, pode ser encarregado de não importa que emprego. Tem isso de comum com os nossos deputados, que por obra e graça de eleição, tornam-se em uma espécie de pau para toda a obra, de que se pode indiferentemente fabricar um ministro de finanças ou um ministro de obras públicas.

Como se não bastasse a crítica directa daqueles autores franceses à sua elite política nacional, João Marques Pereira aproveita a oportunidade para lançar, também ele, algumas farpas nacionais. Assim, em nota de pé de página, Marques Pereira tece o seguinte comentário: Este trecho não parece escrito por um francês, a respeito de chinas, mas por um português, acerca dos ilustres pais da pátria lusitanos que tão aptos são para deitar tombas numas botas, como para tapar buracos das arcas do Tesouro! É por isso que dia a dia vai aumentando o número das botas rotas e estão mais esburacados os cofres nacionais! E, como o tal Sheng, comilão de primeira ordem e tocador de tantos instrumentos, quantos há semelhantes nesta nossa Lusitânea amada!

Exército chinês de 1885

Exército chinês de 1885

O contexto

O artigo de João Feliciano Marques Pereira, publicado em 1898, encontra-se inserido num contexto histórico-político muito particular do Império da China.

Com a I Guerra do Ópio (1839-1842) abriu-se para a China um longo período de derrotas militares e políticas, obrigada que foi a ceder às pressões e aos interesses do mundo ocidental. A II e III Guerras do Ópio e os sucessivos tratados com as potências ocidentais, agravadas com o eclodir de agitações sociais internas, como a revolta Taiping, acabaram por dar uma imagem de um Império cheio de fragilidades, nomeadamente do ponto de vista militar.

Esta imagem alimentou actos de conquista e de ingerência e também algumas ideias que iam no sentido de demonstrar a facilidade que qualquer nação teria, incluindo a portuguesa, em conquistar tão vasto império.

No caso português, lembremo-nos tão somente de Carlos José Caldeira e da sua obra Apontamentos de uma Viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa, de 1852, onde defendeu, de uma forma muito clara, a possibilidade de Portugal fazer a guerra à China.

Nos derradeiros anos do século XIX, esta imagem de fragilidade militar consolidou-se com a derrota militar da China frente ao Japão (1895) que proporcionou às potências ocidentais encetarem um novo avanço no sentido de partilharem algumas áreas importantes. Também nestes últimos anos surgiram lutas internas, marcadas por um recrudescimento das sociedades secretas e que culminaram, logo em 1900, com a Guerra dos Boxers e, onze anos depois, com a proclamação da República, pondo um ponto final na dinastia imperial Qing, iniciada em 1644.

Foi neste contexto que João Marques Pereira apresentou estas notas de E. Bard e E. Bujac na revista TSYK onde se salientava, mais uma vez, a inoperância militar chinesa mas sem pôr em causa a bravura do seu povo. Esta nuance parece-nos ser digna de registo pois, do nosso ponto de vista, traduz uma vertente importante do pensamento de Marques Pereira sobre a civilização chinesa e as relações que esta foi mantendo com o mundo ocidental.

Exercito chines Taiping (02)

Caldeira versus Marques Pereira

Ao lermos este artigo na TSYK rapidamente nos veio à ideia a descrição que Carlos José Caldeira nos deixou naquela sua obra.

Em seis páginas, Caldeira traça-nos a sua visão do exército chinês onde podemos encontrar alguns pontos coincidentes com o artigo de Marques Pereira, nomeadamente no que diz respeito ao uso deficiente das armas de fogo, ao desconhecimento de tácticas de combate, à incompetência dos chefes militares, ao pouco prestígio atribuído à carreira militar e, ainda, às deficientes condições da artilharia e da marinha.

A grande divergência entre os dois textos encontra-se fundamentalmente nas conclusões que se pretendiam tirar da situação em que o exército chinês se encontrava.

Enquanto que, para Carlos José Caldeira aquela descrição servia para provar a facilidade de um exército europeu ocupar os portos, rios e canais da China e, deste modo obrigá-la a ceder às exigências ocidentais, em João Marques Pereira o acento tónico era colocado na forma como as potências ditas “civilizadas” actuavam no Celeste Império.

Importa sublinhar que existem cerca de cinquenta anos a separar estes dois textos. Caldeira, no início da década de cinquenta, estava ainda a viver os primeiros anos de intervenção bélica na China por parte das potências européias. João Marques Pereira, nos anos de viragem para o século XX, escreve num contexto completamente diferente, com a China a conhecer os últimos anos da governação imperial.

Mas, mais importante são as diferenças na forma como os dois autores apresentam o soldado chinês, isto é, as diferentes visões do outro (chinês) traça­das pelo pensamento ocidental. Enquanto que, em Marques Pereira, se sublinhava o valor do soldado chinês, individualmente, salientando-se as incapacidades logísticas e das chefias militares, para Carlos Caldeira, o soldado chinês só merecia reparos negativos, desde o modo como se comportava no campo de batalha até à forma como se relacionava com o inimigo após as derrotas militares. Assim, o povo chinês era apresentado sem orgulho nem amor patrióticos, indiferente aos êxitos ou fracassos políticos, prestando unicamente atenção ao modo como ganhar mais dinheiro.

Exército chinês de 1867-1868

Exército chinês de 1867-1868

Uma questão civilizacional

As notas sobre o exército chinês daqueles dois autores franceses são precedidas de uma introdução de João Feliciano Marques Pereira.

Em cerca de três páginas, o nosso autor, com a ironia e a sagacidade que lhe eram peculiares, apresenta as repercussões do movimento civilizador ocidental na vida militar do Celeste Império.

Partindo da premissa inicial de que o povo chinês seguia sempre os costumes dos seus antepassados, com a pressão dos grandes fornecedores ocidentais de armamento, passaram a ter um exército onde conviviam flechas, arcos e escudos com as modernas “mausers” e “krupps”.

Marques Pereira, neste seu artigo, acaba por denunciar esta “modernização” imposta por interesses alheios mas que, como já então era possível verificar, iria ter consequências nefastas para os seus autores, (ver caixa).

Num tom sempre irónico, o Ocidente é apresentado como o grande defensor da civilização” (como se fosse possível ignorar a milenar civilização chinesa) e o modo como aquela máquina civilizadora pretendia “retalhar” o Império.

A China “civilizou-se” e mata a tiro nas ruas de Tien-Tsin, ao mesmo tempo que premeia (premia-br) os oficiais destros no disparar das fuchas. E, se ainda usa kaitocas, emprega o clássico soco ocidental para correr do seu território os que, em nome da ‘civilização ‘, os ensinaram a defender-se, e agora gritam indignados porque os discípulos os vão dizimando ‘civilizadamente’ com o direito que têm todos os povos de, por meio de flechas ou de espingardas, escorraçar os que, invocando essa ‘civilização’, se apossam do que não lhes pertence e tentam retalhar um país como quem divide um queijo, disputado a unhas e dentes.

Se há quem nos apresente Marques Pereira como alguém pouco sensível  às “razões” chinesas, pelas opiniões políticas que sempre defendeu no que respeita ao modo como era conduzida a política portuguesa na China, pensamos que, pelo contrário, estamos perante um pensamento muito crítico quanto à forma como o mundo ocidental se impunha no Império, pondo em causa uma outra civilização. Finalmente, reconhecia-se o direito do povo chinês rejeitar tal força civilizadora, externa e imposta, por isso sempre recusada.

Em conclusão, a Europa terá de vencer pouco mais de 400.000 soldados, armados de diversos modos e feitios, desde a arma mais aperfeiçoada até ao arco e flechas; mas terá também contra ela a enorme massa dessa fanática população que só pode ser acusada de ingrata por não ter recebido de braços abertos os que conseguiram envenená-la com ópio e, em nome da Civilização, desejam retalhar o território , do mais antigo império da Terra.

 

– – – – –

 (Caixa)

Os civilizadores europeus não podiam consentir em tal. Pois a China não havia de entrar no caminho da civilização, matando gente e fazendo guerra à moda ocidental? Pois seria possível que se consentisse que um tão grande país ficasse estacionário, não se inscrevendo como freguês da casa Krupp, não comprando artefactos do benemérito Canet, do humanitário Armstrong, e dos altruístas fabricantes das espingardas de repetição?

A Europa não poderia permitir uma tal vergonha e a China, à força ou por vontade, havia de ser convencida a aprender o modo de matar europeus com armas européias.

E foi uma verdadeira luta a travada em Pequim pelas legações a favor dos respectivos fabricantes de engenhos de matar gente. (…)

De modo que, no actual momento, são os alemães que, por experiência própria, podem apreciar se são certeiras as pontarias das Krupps manobradas pelos artilheiros amarelos; são os franceses que com os próprios olhos podem avaliar o rigor das trajectórias das granadas disparadas pelas Canets; são os ingleses que poderão depois contar qual o efeito dos balázios das Armstrong nas carnes britânicas; são os russos que poderão bater palmas ao ver estendidos os soldados do czar pela mosquetaria de tiro rápido dos soldados do Filho do Céu.

Ta-Ssi-Yang-Kuo, Série l – Vol. l e II -1899-1900 (Ed. 1995), p. 562

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Publicado às 08/08/2014 por em Exército chinês sec.19 e marcado .

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Rogério P. D. Luz, macaense-português de Macau, ex-território português na China, radicado no Brasil por mais de 40 anos. Autor dos sites Projecto Memória Macaense e ImagensDaLuz.

Sobre

O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.

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