Assim, como bons macaenses, costumamos chamar a famosa via de Macau de “Rua Cinco de Outubro”, suprimindo o “de”. Na verdade, a sua denominação correta é “Rua de Cinco de Outubro”, cujo nome ultrapassa as fronteiras da Macau ex-portuguesa, na China, com a exportação de biscoitos que tive oportunidade de comprar numa mercearia chinesa em São Paulo.
Em excelente artigo do amigo Manuel V. Basílio, macaense residente em Macau, vamos conhecer a sua história:
RUA DE CINCO DE OUTUBRO
e o topónimo originalmente dado por chineses
por Manuel V. Basílio (texto, fotos e legendas)
Os três caracteres chineses que estão escritos entre parênteses na placa toponímica lêem-se “si máng kai”, isto é, Rua do Simão. Foto M.V Basílio
A Rua de Cinco de Outubro, que começa na Rua da Ribeira do Patane, junto da Rua Norte e termina na Travessa de Cinco de Outubro, entre a Travessa da Caldeira e a Rua das Lorchas, foi outrora uma via muito movimentada, devido à diversidade de actividades que aí floresciam, porquanto era a artéria principal do Bazar Chinês, antes da abertura da Avenida de Almeida Ribeiro. Anteriormente era denominada Rua Nova de El-Rei, tendo sido alterada para a actual denominação, após a implementação da República Portuguesa. No entanto, a denominação original em chinês não era “Wong Ká San Kai” (皇家新街), isto é, Rua Nova de El-Rei, nem “Sâp Yuet Chó Ng Yât Kai” (十月初五日街), ou Rua de Cinco de Outubro, mas sim Si Máng Kai (呬𠵼街). Embora a expressão ou combinação dos caracteres sínicos 呬𠵼 (si máng) não exprimam qualquer significado, foneticamente, são a transliteração do nome “Simão”.
No livro Toponímia de Macau (Vol. II), do Mons. M. Teixeira, há uma referência a um Botelho, “que deu o seu nome ao Largo, depois ao Cais e subsequentemente à Calçada do Botelho”. Diz o autor do livro que “não o pudemos identificar, mas cremos que se trata de um ascendente de Simão Joaquim Botelho”. A menos que esse ascendente também se chamava Simão, caso contrário tudo leva a crer que teria sido o referido Simão Joaquim Botelho quem deu o nome a “Si Máng” (Simão) “Kai” (Rua), bem como a “Si Máng” (Simão) “Má T’âu” (Cais). Efectivamente, há uma via, que começa na Rua do Guimarães e termina na Rua dos Faitiões (atravessando a actual Rua de Cinco de Outubro), denominada Rua do Infante, literalmente, em chinês, “Wong Chi Kai” (皇子街), mas também é conhecida por “Si Máng Ma T’âu”(呬𠵼碼頭), e estes 4 caracteres chineses ainda figuram na placa toponímica. A Rua do Infante fica muito próxima da Rua do Tarrafeiro, que termina na Calçada do Botelho e o Cais deveria situar-se nas imediações do extinto Largo do Botelho, onde em 1727 o embaixador Alexandre Metello de Sousa e Meneses desembarcou, após o regresso de uma viagem à China. Por conseguinte, na época em que existia o Cais do Botelho (ou, em chinês, Cais do Simão), a água do rio chegava até ao sopé do morro, então conhecido por Penedos de Camões, continuando ao longo da actual Rua dos Faitiões, Rua da Tercena e Rua de Nossa Senhora do Amparo, formando então a Praia Pequena. O Cais do Simão e outros cais que existiam na Praia Pequena extinguiram-se devido ao gradual assoreamento da zona ribeirinha e a subsequentes aterros. Foi em 1873 que se iniciou a execução da primeira fase do alargamento do aterro marginal do Porto Interior, por ordem do Governador Januário de Almeida, Visconde de S. Januário.
Uma loja nova ao lado de uma loja de venda de chá muito antiga, a Loja de Chá Ieng Kei. Foto M.V. Basílio
O reboliço que outrora se vivia na Rua de Cinco de Outubro (adiante, abreviadamente, “a Rua”), praticamente já deixou de existir, sobretudo a partir do momento em que deixaram de aportar navios a vapor no Porto Interior, passando os novos barcos de carreiras entre Macau e Hong Kong a atracar no terminal marítimo do Porto Exterior e, também, quando a cidade começou a expandir para os lados dos novos aterros do Porto Exterior (NAPE), cujo desenvolvimento foi impulsionado na sequência da construção do Hotel-Casino Lisboa. Essa viragem motivou o gradual encerramento de muitas actividades tradicionais, quer de comércio, quer de serviços, que exerciam naquela Rua e imediações, porquanto até então todo o movimento de barcos e passageiros, bem como de cargas, se concentrava naquela zona do Porto Interior, tanto de dia como de noite, de modo que as casas de pasto, lojas ou casas de chá, designadamente Lok Kók, Kun Nam e Tak Loi funcionavam quase ininterruptamente. Estas três casas de chá já cessaram há muitos anos as suas actividades, mas o estabelecimento onde estava o Tak Loi reabriu mais tarde, sob o novo dístico comercial “Tai Long Fong”. Casas de câmbio, casas de penhor, ouriversarias, tabacarias, farmácias chinesas, lojas de venda de chá, peixe salgado e mariscos secos, mercearias, lojas de fazendas, quinquilharias e tudo o mais se vendia ao longo da Rua. Hotéis, hospedarias e pensões abundavam na Rua e nas vias adjacentes. Próximo do início da Rua, havia um mercado público, o “Kông Yek Kai Si” (公益街市), já demolido, restando presentemente apenas um dos pórticos. A Rua atravessa o coração do Bazar, ou seja, o Largo do Pagode do Bazar, com o templo chinês “Hóng Kông Miu” a confrontar o espaçoso Largo, onde vendilhões montavam tendas para as suas actividades. Nos prédios junto ao Largo funcionavam pensões ou hospedarias, e também “fantáns” ou casas de jogo.
Embora os caracteres 呬𠵼街 (Si Máng Kai, isto é, Rua do Simão) ainda figurem (entre parênteses) na placa toponímica, por baixo dos caracteres 十月初五日街 (Sâp Yuet Chó Ng Yât Kai, literalmente, Rua Cinco de Outubro), a juventude de hoje e forasteiros só conhecem esta via por “Sâp Yuet Chó Ng Kai” ou Rua de Cinco de Outubro.
Tendo vivido e passado a minha juventude nas imediações da igreja de Sto. António, transitando com frequência toda a zona envolvente da Rua de Cinco de Outubro, guardo ainda a grata recordação de ter ouvido da boca de velhos residentes pronunciar “Si Máng Kai”. Naturalmente, no decurso de tantos anos, este topónimo em chinês foi caindo em desuso, passando então a fazer parte da história.
Interior da Loja de Chá Ieng Kei. Embora com alguns móveis antigos, as prateleiras já foram remodeladas. Foto M.V. Basílio
Hoje em dia, ainda podemos encontrar em toda a extensão da Rua de Cinco de Outubro algumas lojas tradicionais, do tipo familiar, geridas por descendentes de várias gerações, que tentam reavivar o negócio, mantendo o tradicional ou mudando de ramo de actividade, renovando ou dando uma nova imagem aos seus estabelecimentos. Dado que a Rua se situa numa zona antiga da cidade, muitos dos prédios que conheci já foram demolidos e reconstruídos, e os que ainda existem, ou estão em abandono ou em muito mau estado de conservação.
Apesar de os topónimos em português e em chinês nem sempre são coincidentes, constituindo as divergências uma das especificidades de Macau, são no entanto muito ricos em termos de história e de curiosidades, que merecem ser exploradas.
Um troço da Rua de 5 de Outubro, vendo-se ao fundo o telhado do templo chinês Hóng Kông Miu. Foto M.V. Basílio
(clicar nas fotos para ampliar e/ou passar o mouse/rato na foto para ler a legenda)
Algumas lojas tradicionais. A primeira, à direita, é uma loja que vende massa de fitas, a seguir, de mariscos secos e outras iguarias e, a terceira, de carnes assadas. Foto M.V. Basílio
O pórtico que resta do antigo mercado público “Kông Yêk” (公益街市) , em português, Mercado do Tarrafeiro. Foto M.V. Basílio
Uma loja muito antiga com o curioso dístico comercial CHENG KEI EFEITOS NAVAIS E UTILIDADES DOMÉSTICAS. Foto M.V. Basílio
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
Não poderia este blogue deixar de fazer mais um registo histórico de uma tradição mantida na Macau do ano de 2023, hoje, território da República Popular da China. Assim, o nosso colaborador, Manuel V. Basílio, macaense residente em Macau, nos dá o relato, com fotos, sobre a procissão de Nossa Senhora de Fátima realizada no […]
No Anuário de Macau do ano de 1962, nas páginas finais, vários anúncios publicitários encontravam-se publicados, os quais, reproduzimos abaixo para matar as saudades de quem viveu aquela época de ouro, ou então, para curiosidade daqueles que possam se interessar em conhecer, um pouco mais, aquela Macau de vida simples, sem modernidade, mas, mais humana.
Páginas digitalizadas do Anuário de Macau, Ano de 1962, o que aparentemente foi o último da série, ficamos aqui a conhecer quem eram as pessoas que ocuparam cargos no – Governo da Província e Repartições Públicas. Mesmo passados mais de 60 anos, agora que estamos na década com início em 2020, muitos nomes ainda estão […]
Saudades de Macau de outros tempos. Lindaa fotos e excelente artigo.
Bom trabalho do Basílio, Henrique, Abraço