Artigo, fotos e legendas de autoria de – Manuel V. Basílio
PECULIARIDADES DE CERTOS PÁTIOS E BECOS DE MACAU
Durante séculos, a cidade de Macau, sobretudo nas zonas mais antigas, cresceu de forma desordenada, sem estar sujeito a um plano ou traçado urbanístico e, deste modo, muitas casas foram construídas ao longo de servidões ou passagens relativamente estreitas, que hoje constituem travessas, pátios e becos.
(*Editor: Macau, no Sul da China, foi um território sob administração portuguesa por cerca de 440 anos. A devolução à R.P. da China ocorreu em 1999)
Por conseguinte, se consultarmos um cadastro de vias públicas de Macau, podemos constatar um grande número de travessas, pátios e becos, alguns deles já incorrectamente designados, pois há travessas que agora são becos e becos transformados em travessas. Tal como acontece com muitas outras vias públicas de Macau, os topónimos de pátios e becos em português, dum modo geral, também não correspondem às respectivas designações em chinês e esta especificidade reflete claramente a tolerância e a não interferência mútua entre as culturas chinesa e portuguesa.
Ainda hoje subsistem topónimos de pátios e becos que demonstram ter existido um tipo de condomínio fechado, em cujos prédios habitavam membros da mesma família. Podemos citar, designadamente, o Beco das Caixas (Chông Ká Lei 鐘家里), Beco do Chá (陳家里 Chan Ká Lei), Pátio do Abridor (吳家圍 Ng Ká Wâi), Pátio da Mina (李家圍 Lei Ká Wâi), Pátio do Serralheiro (馮家圍 Fông Ká Wâi) e o Beco do Atai (趙家里 Chiu Ká Lei), e também travessas, como a Travessa da Porta (趙家巷 Chiu Ká Hóng), em cujos topónimos está incluído o caracter sínico “Ká” (家), isto é, “família”, significando assim “Chông Ká”, a “família Chông”; “Chan Ká”, a “família Chan”; “Lei Ká”, a “família Lei”; “Ng Ká”, a “família Ng”; etc. Por conseguinte, tais vias eram praticamente locais privados, onde viviam membros da família com o mesmo apelido, sendo o acesso geralmente feito por um portal alpendrado, com portão ou porta que se fechava sobretudo durante a noite para impedir a entrada a estranhos. Com o desenvolvimento, quase todos os portais, tanto de becos (里 “Lei”), como de pátios (圍 “Wâi”) já não existem.
Placa toponímica do Beco das Caixas. Os caracteres chineses que estão escritos entre parênteses lêem-se Chông Ká Wâi 鐘家圍 , isto é, Pátio da Família Chông, como era também conhecido. (Foto: MV Basílio)
Actual aspecto do Beco das Caixas, em chinês, Chông Ká Lei 鐘家里 (literalmente, Beco da Família Chông), também conhecido por Chông Ká Wâi 鐘家圍 (isto é, Pátio da Família Chông). Mesmo hoje em dia há vias em que o Beco e o Pátio não se distinguem. O Beco das Caixas começa na Rua dos Mercadores, em frente da Rua Norte do Mercado de S. Domingos e termina na Rua de Camilo Pessanha, ligando assim estas duas ruas. Por isso, podemos dizer que já nem é beco ou pátio, mas sim uma travessa.(Foto: MV Basílio)
Presentemente, os referidos locais estão descaracterizados, devido às novas edificações, ou porque os prédios, já velhos e deteriorados, não dispõem de mínimas condições para serem habitados, por falta de manutenção, dado que as obras de conservação são demasiado dispendiosas, ou porque muitos dos herdeiros já emigraram, deixando, desta forma, a propriedade em completo abandono.
O portal alpendrado do Pátio da Ilusão constitui um exemplar único existente em Macau. Mesmo por cima da placa toponímica, ainda existe uma janela, onde era a casa do guarda. Originalmente, o portal tinha uma porta de ferro forjado, que se mantinha fechada para impedir a entrada de estranhos ao pátio. (Foto: MV Basílio)
Existiram também pátios ou becos que, embora nos respectivos topónimos não constem o caracter “Ká” (家), ali viveram, por várias gerações, famílias do mesmo ramo. Um desses pátios é o Pátio da Ilusão, em chinês, 幻覺圍 (Wán Kók Wâi), que literalmente “Wán Kók” significa ilusão e “Wâi” quer dizer pátio, o qual está situado junto da Rua do Bazarinho e tem entrada por um portal a que corresponde o nº 4 desta Rua. Transpondo o portal e subindo em seguida quatro degraus, podemos ainda ver do lado direito um conjunto de 3 prédios de dois pisos, já desabitados e em péssimo estado de conservação, pois as coberturas já se encontram seriamente degradadas. Originalmente, era um conjunto de cinco prédios, dois dos quais já derrocaram, ficando os restantes três à mercê da mesma fatalidade. Conforme nos informaram, viveu nesse pátio um abastado comerciante chinês, de apelido Yü (余), o qual mandou construir aquele conjunto de cinco prédios, um dos quais para si, mulher legítima e filhos, e os restantes, designadamente, para as suas concubinas e filhos, todos ali vivendo segundo os usos e costumes chineses, pois, embora a lei chinesa então vigente não permitia a bigamia, o regime de concubinato era tolerado, devido à necessidade de haver um descendente varão para assegurar a continuidade do ramo familiar e prestar culto aos antepassados. Apesar de todo o agregado da família Yü (余) viver dentro de um pátio, que na realidade era um condomínio fechado, diversas actividades se desenvolviam dentro daquele recinto, incluindo a instrução dos filhos do progenitor, visto que funcionou num dos prédios uma sala de aulas, a cargo de um professor particular, onde tanto filhos seus como crianças de amigos que viviam nas imediações ali aprendiam a ler e a escrever.
O portal que dá acesso ao Pátio da Ilusão, construído de tijolo cinzento, constitui um exemplar único que ainda resta em Macau, porquanto as suas características são mesmo singulares. Naqueles tempos, o acesso ao pátio era vedado ao público, visto que havia um portão que se mantinha fechado e vigiado por um guarda, estando o seu posto de vigia localizado por cima do arco do portal, onde ainda existe uma janela, através da qual o guarda podia verificar a identidade dos moradores e visitantes. O acesso ao posto de vigia era feito por uma escada que havia junto à parede do lado esquerdo do portal. Informaram-nos também que, antes da transição da administração, ainda havia um portão de ferro forjado naquele portal. Porém, certo dia, apareceram umas pessoas que alegaram ser funcionários de um departamento do governo e que estavam incumbidos de retirar o portão para ser restaurado. Porém, passados estes anos todos, o portão ainda não foi lá recolocado e, possivelmente, agora já nem se sabe o seu paradeiro. Infelizmente, o conjunto de prédios que ainda resta, com um portal tão característico, não faz parte do património protegido, com interesse arquitectónico ou valor artístico, por conseguinte, parece ter destino traçado – deixar ao abandono e à mercê de intempéries, à espera que um dia acabe por desabar.
Pátio da Ilusão – Os três prédios que ainda restam da edificação que, originalmente, era constituído por um conjunto de cinco prédios, dois dos quais já desabaram. (Foto: MV Basílio)
Fotos abaixo do Pátio da Ilusão: (da esquerda)-Um dos prédios, já sem cobertura e ameaçando ruína;(da direita)-O pátio visto por dentro. Em primeiro plano do lado esquerdo estavam os dois prédios que já desabaram. (Fotos: MV Basílio)
Fotos abaixo do Pátio da Ilusão: (da esquerda)-Pormenor do portal visto por dentro; (da direita)-Pormenor do portal visto lateralmente. (Fotos: MV Basílio)
Pátio da Ilusão – Pormenor do portal, podendo-se ver dois blocos de granito embutidos, onde estão chumbadas as respectivas peças que serviam para fixar a meia-porta de ferro do portal. (Foto: MV Basílio)
Entretanto, será ainda possível que a ilusão se transforme em realidade, de molde que aquele conjunto de edificações do Pátio da Ilusão venha a ser requalificado e protegido? (MV Basilio)
O ESTADO ACTUAL DOS REFERIDOS PÁTIOS E BECOS, COM AS RESPECTIVAS PLACAS TOPONÍMICAS
Placa toponímica do Pátio do Abridor, em chinês, Ng Ká Wâi 吳家圍 que, literalmente, significa Pátio da Família Ng. Este Pátio não tem saída. (Foto: MV Basílio)
Actual aspecto do Pátio do Abridor, em chinês, Ng Ká Wâi 吳家圍 que, literalmente, significa Pátio da Família Ng. O Pátio está situado entre a Avenida de Almeida Ribeiro e a Rua do Matapau, sendo o acesso feito pela Rua dos Mercadores. Todas as manhãs, apenas durante umas horas, funciona uma tenda, mesmo junto à entrada do Pátio, que vende o tão apreciado “chü cheong fân” e uma variedade de canja, acompanhada de “yau cháu kwâi”, e lá dentro há algumas mesinhas para os clientes. Este Pátio, cuja via é curta e estreita, não tem saída. Na foto podemos ver duas pessoas junto à tenda, à espera de serem aviadas. (Foto: MV Basílio)
Placa toponímica do Beco do Chá, em chinês, Chan Ká Lei 陳家里 , que significa, literalmente, Beco da Família Chan. Anteriormente, a via era conhecida por Chan Ká Wâi 鐘家圍 , isto é, Pátio da Família Chan, como indicam os caracteres chineses que estão escritos entre parênteses. (Foto: MV Basílio)
Actual aspecto do Beco do Chá, em chinês, Chan Ká Lei 陳家里 (literalmente, Beco da Família Chan), também conhecido por Chan Ká Wâi 陳家圍 (isto é, Pátio da Família Chan). Este Beco está situado junto da Rua de Camilo Pessanha. Presentemente, do lado esquerdo junto à entrada do Beco ainda funciona a Loja de Quinquilharias Hip Kei e, do lado direito, podemos ver a placa toponímica do Beco afixada na parede. (Foto: MV Basílio)
Placa toponímica do Pátio da Mina, em chinês, Lei Ká Wâi 李家圍 , ou seja, Pátio da Família Lei. (Foto: MV Basílio)
Aspecto actual do Pátio da Mina, em chinês, Lei Ká Wâi 李家圍 (literalmente, Pátio da Família Lei). Este Pátio está situado junto da Rua de Nossa Senhora do Amparo. Na parte tardoz deste Pátio ainda se podem ver vestígios da entrada de um túnel subterrâneo que, segundo dizem, ia até ao Colégio de S. Paulo. Foi junto ao Pátio da Mina o local onde se situava o Hopu ou alfândega chinesa da Praia Pequena, que ali funcionou até ser extinto por ordem do Governador Ferreira do Amaral. (Foto: MV Basílio)
Placa toponímica do Beco do Atai, em chinês, Chiu Ká Lei 趙家里 que, literalmente, significa Beco da Família Chiu. Os caracteres chineses que estão escritos entre parênteses lêem-se Chiu Ká Wâi 趙家圍 , isto é, Pátio da Família Chiu, como era anteriormente conhecido. Este Beco está situado junto da Rua das Estalagens. (Foto: MV Basílio)
Placa toponímica do Pátio do Serralheiro, em chinês, Fông Ká Wâi 馮家圍 que, literalmente, significa Pátio da Família Fông. Este Pátio está situado junto da Rua do Pagode e não tem saída. (Foto: MV Basílio)
Aspecto actual da Travessa da Porta, em chinês, Chiu Ká Hóng 趙家巷 (literalmente, Travessa da Família Chiu). Esta Travessa começa na Rua de Camilo Pessanha, nas proximidades da Rua da Madeira, e termina na Rua dos Mercadores. No lado esquerdo desta via ainda existe um enorme prédio, desabitado e parcialmente degradado, que deveria fazer parte das residências da família Chiu. (Foto: MV Basílio)
Rogério P D Luz, amante de fotografia, residente em São Paulo, Brasil. Natural de Macau (ex-território português na China) e autor do site Projecto Memória Macaense e o site Imagens DaLuz/Velocidade.
Memória - Bandeira do Leal Senado - para nunca ser esquecida -CIDADE DO SANTO NOME DE DEUS DE MACAU, NÃO HÁ OUTRA MAIS LEAL- Esta é a antiga bandeira da cidade de Macau do tempo dos portugueses, e que foi substituída após a devolução para a China em Dezembro de 1999
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau (ex-território português na China por cerca de 440 anos e devolvida em 20/12/1999) sua história e sua gente.
Macaense – genericamente, a gente de Macau, nativa ou oriunda dos falantes da língua portuguesa, ou de outras origens, vivências e formação que assim se consideram e classificados como tal.
*Autoria de Rogério P.D. Luz,, macaense natural de Macau e residente no Brasil há mais de 40 anos.
Escrita: língua portuguesa mista do Brasil e de Portugal conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
cartaz de Ung Vai Meng
O tema do blog é genérico e fala do Brasil, São Paulo, o mundo, e Macau - ex-colônia portuguesa no Sul da China por cerca de 440 anos e devolvida para a China em 20/12/1999, sua história e sua gente.
Escrita: língua portuguesa escrita/falada no Brasil, mas também mistura e publica o português escrito/falado em Portugal, conforme a postagem, e nem sempre de acordo com a nova ortografia, desculpando-se pelos erros gramaticais.
Não poderia este blogue deixar de fazer mais um registo histórico de uma tradição mantida na Macau do ano de 2023, hoje, território da República Popular da China. Assim, o nosso colaborador, Manuel V. Basílio, macaense residente em Macau, nos dá o relato, com fotos, sobre a procissão de Nossa Senhora de Fátima realizada no […]
No Anuário de Macau do ano de 1962, nas páginas finais, vários anúncios publicitários encontravam-se publicados, os quais, reproduzimos abaixo para matar as saudades de quem viveu aquela época de ouro, ou então, para curiosidade daqueles que possam se interessar em conhecer, um pouco mais, aquela Macau de vida simples, sem modernidade, mas, mais humana.
Páginas digitalizadas do Anuário de Macau, Ano de 1962, o que aparentemente foi o último da série, ficamos aqui a conhecer quem eram as pessoas que ocuparam cargos no – Governo da Província e Repartições Públicas. Mesmo passados mais de 60 anos, agora que estamos na década com início em 2020, muitos nomes ainda estão […]
Histórias muito interessantes, sobretudo para quem viveu e amou Macau durante mais de 50 anos. Gostaria de conhecer quando for caso disso, as história da Calçada do Embaixador que fica entre a Rua de São Paulo e Nossa Senhora do Amparo (ou Rua dos Faitiões, não estou certo). Existia no topo da Calçada, uma porta que dava para a Rua de São Paulo…não sei se ainda existe. Belo trabalho.
Infelizmente, já não existe o referido portal, nem o do Pátio da Eterna Felicidade, situado na Rua de Sto. António, demolido há vários anos, quando fizeram a construção de um novo prédio. O nome da Calçada do Embaixador foi dado em homenagem a Alexandre Metello de Sousa e Menezes, que foi enviado por D. João V, como seu embaixador, ao então imperador da China, Yông Cheng (em pinying, Yongzheng), tendo desembarcado em Macau a 12 de Junho de 1726 e aqui permanecido por um curto periodo, a fim de preparar a sua viagem para Pequim. Agradeço o seu comentário e o apreço pelo trabalho.